domingo, 16 de junho de 2013

DISCURSO À ESTÁTUA


Em resposta ao desafio do Carlos Viana...
Salvé Doutor Joaquim António de Aguiar, estrénuo defensor do cartismo e conimbricense de gema galada!

Foi com estas palavras que me dirigi à estátua, estendendo o braço numa saudação romana, a capa traçada à tricana, um capacete de cartolina e uma espada de madeira, sob o olhar protector do Zé Maria, fitado de Direito que se formou aos 35 anos de idade depois ter andado por Coimbra mais de quinze, que me tinha mobilizado para o acompanhar na Latada e de quem fiquei amigo para o resto da vida.
Era a minha sina como caloiro naquele ano distante de 1963, a que me submetia. Lembro-me de estarem em volta a assistir, entre muitos outros, o Lucas Pires, o Vital Moreira, o Fernando Torres, o Carlos Encarnação, este último também caloiro como eu.
Visto à distância, este quadro parecia uma premonição do variado leque politico parlamentar que compuseram anos mais tarde.
É curioso que sendo eu verdadeiramente um tímido, nestas teatrices a voz e o gesto soltavam-se-me como se num palco estivesse plantado.


E prossegui com gestos largos e voz pausada:

Sei que petrificado como está, a sua voz não será audivel ao comum dos mortais.
O que não acontece comigo porque, embora sendo mortal não sou comum e tenho o dom de assimilar mensagens telepáticas.
Consigo portanto ouvir perfeitamente as suas sábias palavras e ensinamentos que terei a maior honra em transmitir à douta e ilustre plateia que me rodeia, ávida de enriquecer os seus já vastos conhecimentos adquiridos na mesma prestigiosa Universidade onde Vossa Excelência estudou e leccionou há mais de um século atrás.
E as três questões mais obscuras na mente dos nóveis doutores aqui presentes, que me encarregaram desta missão, às quais humildemente lhe requeiro a
bondade de os esclarecer, são as seguintes:

A primeira é a de saber porque alcunharam V. Exª com o pejorativo epíteto de Mata-Frades.
 

A segunda é a de nos revelar o que escreve e porque escreve na folha de papel que a sua mão esquerda segura.
E a terceira e última é a de nos poder esclarecer como consegue escrever algo, se não se vislumbra qualquer tinteiro onde possa molhar o aparo da pena que a sua mão direita sustenta.
Suspendi a interpelação, pedi silêncio e de ouvido a escuta e os olhos no infinito, fingi aguardar pela resposta da estátua.
Voltei-me de costas para a estátua e transmiti aos presentes as respostas que telepáticamente tinha recebido:

O insigne Doutor de Leis aqui há longos anos ao frio, ao sol e à chuva transmite aos ilustres circunstantes e em resposta ao por mim questionado, o seguinte:

Que foi injustamente alcunhado de Mata-Frades, por ter feito aprovar uma lei anti-clerical que nacionalizava os bens das ordens religiosas, porque em seu entender essa riqueza era necessária à Fazenda Nacional para suprir graves carências públicas.
Fez questão de esclarecer que ficaram de fora as ordens religiosas femininas e que por isso não lhe chamaram também o Mata-Freiras.

Quanto à segunda questão, O Doutor Aguiar informa-nos que o papel que tem na mão serve para anotar os nomes dos infractores às posturas municipais, designadamente a do Presidente Dr. Moura Relvas, que instituiu uma multa às vendedeiras dos arrabaldes que entrassem descalças na cidade.

Relativamente à terceira e última dúvida suscitada por mim, fungou e disse-me para olhar bem. A pena que tinha na mão direita era de tinta permanente, pelo que não precisava de tinteiro. E que, se precisasse, tinha a aquiescência do Director do Banco de Portugal, ali ao lado, para a molhar no tinteiro dele...
Rui Felicio

20 comentários:

  1. Eu é que fiquei petrificado, com esta pérola de exaltação intelectual, que foi o discurso do ainda imberbe estudante lateiro, a uma das mais nobres figuras da cidade. Estou certo que o Mata - Frades que gostava de freiras, lá no Assento Etéreo onde se sentou, terá ficado orgulhoso do discípulo que, pelos Ventos da Bonança e do Destino, para além dos seus dotes oratórios e craveira intelectual, era também filho dilecto de Coimbra.

    Em suma, o futuro Dr. Felício de barrete de cartolina e espada de madeira, passeava perante a culta plateia a força da sua poderosa argumentação.

    Afinal, a mesma argumentação que fez destroçar corações femininos décadas a fio, tal como Vaz de Camões ou Barbosa du Bocage ...

    Um dia, numa zona nobre do Bairro - a Praça dos Baloiços - junto ao tabuleiro das Damas onde te vou dar grandes abadas, ser-te-à edificada uma estátua. De pena na mão e olhar sonhador. É o Bairro a perpetuar-te a memória.

    Um Abraço

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  2. Com argumentos destes, acredito que quem tenha ficado petrificado tenham sido os pseudo-doutores que estavam a assistir, convencidos que iam gozar com a ingenuidade do caloiro!...

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  3. Agradeço ao Quito e ao Alfredo as amáveis palavras.
    E aproveito para explicar a razão deste post.
    Há dias, num passatempo do Paulo Moura, adivinhei facilmente a solução porque nunca esqueci a estatueta que embeleza o pedestal da estátua exactamente porque foi a olhar para ela que tive que fazer este discurso no final da Latada de Direito daquele ano.
    E o Carlos Viana desafiou-me a refazer esse discurso.

    É claro que já não me lembro das exactas palavras que na altura usei, mas recordo-me do essencial, isto é, do "esqueleto" do discurso que não anda longe daquele que aqui conto.

    Porque o que a memória retém são as ideias. Não tanto as palavras. pela simples razão de que há milhares de maneiras de transmitir uma mesma ideia...

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  4. Caro RUI, gostei desta tua prosa,define o que representas hoje.
    Um bom MOÇO,mas ao mesmo tempo uma maneira de reviralho de estares na vida.
    Um Abraço.
    Tonito.

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  5. Deixa-me corrigir-te amigo Tonito.
    Somos ambos dois bons moços, na flor e com a pujança de terceira idade...
    Um abraço

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    1. A 4ª idade confirma que os dois moços estão na flor da idade!
      Ah!quanto à pujança também não duvido, claro!

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  6. Aqui enalteço o excelente comentário do Tonito,sintectico e genuino.
    Claro que o caloiro se saiu muito bem.

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  7. Por isto - também - Coimbra é, desde sempre, património da humanidade!

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    1. E por muitas criticas que se façam à juventude actual, constatei feliz que ao contrário dessas criticas, a juventude de hoje mantém inalterado o espirito juvenil de Coimbra e das suas tradições, quando estive no Estádio do Jamor no ano passado.

      As tuas filhas que estive a observar antes do jogo mostraram isso e depois durante o jogo, no meio da Mancha Negra onde calhei, fizeram-me recordar a mesma irreverência educada e civilizada do meu tempo.

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    2. As minhas filhas saíram do Jamor roucas.
      E agora li-lhes o que escreveste e... ficaram sem palavras. Como eu.
      Abre aço!

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  8. Olinda disseste bem.
    Aliás, o poder de sintese do Tonito, tanto na fala como na fotografia é já proverbial.
    Na vizinhança da tua casa é uma espécie de contraponto à tua expressividade.
    Formas de ser diferentes, mas ambas louváveis e complementares...

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  9. Em boa hora me lembrei de pedir ao Rui Felício que tentasse refazer o discurso. Porque lhe conheço o engenho e arte, porque lhe conheço a enorme apetência para aceitar desafios, sabia que iríamos conhecer o Discurso à Estátua...
    Cá está ele, soberbo!
    Com palavras que não serão as mesmas mas respeitando o "esqueleto" do discurso, porque o importante é a ideia e não tanto as palavras que a transmite, fez-me rir e também me fez rever e sonhar com uma Coimbra que aprendi a amar.
    E ainda deu para aprender História. Não sabia que o Mata-Frades tinha poupado as Freiras...
    Quanto à postura que multava quem andasse descalço nas cidades, penso que não era do Moura Relvas. Era a nível nacional e custava, se a memória não me falha, 80$50.
    Uma bagatela, pouco mais do que 40 cêntimos...

    Aquele abraço!



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    1. Obrigado pelo desafio e pelo comentário Carlos Viana.
      Desculparás a falta de rigor quanto à multa. Afinal o discurso foi pronunciado por um reles e aignorante caloiro.
      Além disso, o simbolo do poder que Moura Relvas representava fazia dele um alvo a abater que no meu discurso não podia desperdiçar.

      Quanto ao valor da multa já discordo que fosse uma bagatela.
      Se bem me recordo, na época 80,50 escudos correponderiam a um dia de trabalho de um assalariado qualificado.

      Além disso, sei que as ordens religiosas femininas ficaram livres da tal lei que confiscava os bens monásticos masculinos, mas desconheço a razão para essa excepção.

      Há-de ter havido alguma, mas no seu desconhecimento todas as especulações são possiveis...

      Um abraço

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  10. Foi precisamente no passatempo do Paulo Moura – “Isto está algures em Coimbra…mas onde”, que u Rui Felício com uma certeza absoluta e em dois comentários de rajada-e os primeiros- não só desfez o enigma, como também e para confirmar que para ele o assunto era”canja”, nos revelou que fizera um discurso ao Mata Frades, sempre com o olhar fixo nas estatuetas da base da estátua, como caloiro numa Latada de Faculdades de Direito.
    Bem me lembro que nesta época, bem como em anteriores e muitas mais posteriores, as latadas eram por Faculdades e salvo erro às terça-feiras (ou seria às quintas?).
    Assisti a muitas, mas normalmente não passava da Praça da Républica. Quem sabe se assisti à deste ano do Rui!
    O Rui correspondeu ao repto do Viana e assim tivemos o privilégio da reconstituição desse discurso!
    Claro que gostei imenso do conteúdo do discurso e da maneira superior como está escrito, sempre na linha deliciosa a que o Rui já nos habituou!
    Quanto às “coimas” aplicadas às vendedeiras que circulavam pela cidade, era normal trazerem só um chinelo calçado…assim o par durava o dobro do tempo!

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  11. Gostei de ler e apreciar a capacidade creativa do Rui Felício, pois criou logo uma forma em que se pôs dos dois lados da medalha. Mesmo que pudesse ter gostado de exercer outra profissão, sem dúvidas que tinha a veia de advogado. Pelo esqueleto que nos apresentou, só tenho pena de lá não ter estado ao pé pois podendo ouvir o discurso completo e ver os gestos, teria sido uma meia-hora muito bem passada.

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  12. Obrigado ao Rafael e ao Chico pelos comentários

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  13. Rui Felício já prometia!
    O " defensor da gema galada" ficou sem fala, de certeza.
    Um discurso explicativo, imaginativo e cheio de humor!

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  14. Obrigado Celeste.
    Foste a única que disse uma grande verdade que ainda hoje me pergunto se foi por causa do meu discurso ou se por outro motivo qualquer.
    Na realidade, estou em condições de garantir que, desde essa tarde de Novembro de 1963, a estátua nunca mais falou!

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  15. A estátua não mais falou e com razão. Com um discurso destes, feito por um caloiro, começou a deitar contas à vida com medo da concorrência

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    1. Ló, sou testemunha ocular daquilo que acabas de afirmar. Hoje passei na Portagem e olhei para o Doutor Joaquim António de Aguiar, estrénuo defensor do cartismo e conimbricense de gema galada!
      Sorri para o Mata-Frades, lembrando-me do discurso do Rui Felício.
      Sorri-lhe mas o gajo permaneceu mudo e quedo! Vá-se lá saber porquê!

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