quarta-feira, 12 de junho de 2013

NO VÉRTICE DAS MEMÓRIAS ...







O alvo casario de Estremoz ...
 
Há um fio de luz gentil, que me entra pela frincha da janela. Uma claridade suave que inunda a sala e se plasma no tampo da minha secretária, repleta de livros e de postais de viagem. Agora, tudo acabou. Não tenho vontade de partir. Prefiro acomodar-me nos labirintos de um passado distante. Venham comigo. Sigam-me os passos naquela avenida de passeios largos e árvores desfalecidas pela canícula. Ali ao fundo, ao fundo da avenida, desaguamos num largo inundado de gente. Reparem na azáfama dos tendeiros. E nas mulheres de chapéu de palha na cabeça a resguardo do sol inclemente, que vão dispondo a loiça de barro na esperança de fazer negócio, naquela feira mensal. Olho à minha volta e vejo-me sitiado no meio do casario branco que cerca aquela zona nobre da cidade. Ali, é a taberna do Mourão, com as suas pequenas portadas de vai - vem. Acolá, o Café mais conhecido da cidade. Observem como é sombrio. Lá dentro, uma dúzia de mesas e cadeiras. E um empregado que vai debitando ordens para o balcão, satisfazendo o pedido dos clientes, que são poucos. Ele, o empregado, parece trabalhar febrilmente, como se a casa estivesse cheia de veraneantes. O suor acode-lhe à testa e à garganta, onde desponta um laço preto que sobressai do colarinho branco da camisa que veste. É a farda que usa, como se fosse gémeo do outro empregado que, de cotovelos pousados no balcão corrido onde repousam alguns copos de cerveja, vai olhando absorto a monotonia da Praça e o ondular das vagas de calor que abrasam a planície. Convido-vos a prosseguirem comigo este deambular pela cidade alentejana. Aquele edifício majestoso que ali sobressai, é uma unidade militar. Um Regimento de Cavalaria. Conheço bem aquele quartel. Dali saí um dia, para uma viagem que podia não ter retorno. Não quero lembrar. Não quero lembrar aquela noite junto à Estalagem da Rainha Santa Isabel e do arraial de despedida. Daquele local partimos, para o cais de Alcântara. A guerra era o destino. Recuso esta memória. Mas agora que aqui chegámos, ao morro de onde se domina a planície adormecida, aconselho-vos a percorrer a estalagem de mobiliário pesado e de aspeto austero. Recordar a tarde que um grupo de nós, militares, ali passou. Eles e elas. Sim elas, raparigas da cidade, estudantes, que percebiam o drama de quem ia partir. Ao som de um piano, tocado por um músico residente, falávamos em murmúrio, para depois, logo que o pianista de preto vestido e sapatos de verniz abandonou a sala envolta em penumbra, rirmos num riso desmaiado. Trocaram-se olhares e, se calhar, até juras de amor. Como a Amélia dos cabelos ruivos, que se apaixonou pelo Afonso, meu camarada de armas e que mais não era que um forasteiro na cidade, em trânsito para África. E, naquela noite do arraial, no sofrido momento da partida, ela ficou ali, presa ao chão, acenando-lhe num adeus que era definitivo. Por breves meses, trocaram correspondência. Depois, o caudal de afetos abrandou e extinguiu-se. Amélia deixou de escrever. O tempo diluiu a paixão. Talvez outro Afonso tivesse chegado à cidade, na catadupa de militares sacrificados no altar das conveniências. E eu, ao recordar o meu passado com alguma ternura, ao relembrar aqueles e aquelas que tiveram uma passagem fugaz pela minha vida, sinto que atingi o vértice das minhas memórias.
Quito Pereira              

12 comentários:

  1. Na alvura de Estremoz nascem "escapes" de memória daquele longínquo tempo cinzentão...
    Até eu me arrepio por recordar pormenores que o teu texto me traz à memória...
    Também me aconteceu ficar presa ao chão com um adeus de paixão!!!
    Quarenta anos depois o adeus "virou" a abraço de ternura e paixão entre dois sexagenários já com um longo percurso percorrido em termos pessoais e familiares.
    E assim "sinto que atingi o vértice das minhas
    memórias" parafraseando-te.

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  2. A guerra era o destino. Imagino o que deve ter custado. Eu fui, também, obrigado a ausentar-me por 27 meses, mas tive a sorte de não ter como destino, a guerra.
    Um belo texto.

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  3. Antes de ler o texto, imaginei a que tipo de vértice se referia o título.

    Podia ser o de um triângulo
    Ou de um quadrado
    Ou mesmo de um rectângulo
    Ou seria de um pentágono?
    Ou talvez de um hexágono...
    Mas, pontiagudo como me pareceu, não podia ser de um polígono de muitos lados
    Era, seguramente daquele que menos lados tem
    Claro, de um triângulo...
    Mas qual deles?
    Isósceles?
    Rectângulo?
    Escaleno?
    Ná...
    Escrito pelo Quito só podia ser o vértice de um triângulo equilibrado, regular, equilátero ...
    Nova dúvida:
    Sendo equilátero, todos os vértices são angularmente iguais.
    E, se assim é, qual deles o escolhido?
    O de cima?
    Ou o de baixo à esquerda?
    Ou o de baixo à direita?

    Atormentado pela incerteza, comecei a ler.
    Aceitei o convite do Quito e fui com ele, percorrendo a avenida, até ao largo da feira.
    E dei por mim a experimentar os mesmos sentimentos que vivi em Abrantes, numa mistura de amores fugazes e de receios do que me esperava lá longe em África.
    Como ele, também eu procuro recusar essa memória. Mas é impossivel apagá-la...

    E ao acabar a leitura desfiz a incerteza.
    O vértice está no topo e para ele confluem inexorávelmente as memórias, como acontece com a sublimação do vapor.
    E o triângulo é, como previa, o equilátero. Porque só o consegue desenhar quem tem pena firme e mão segura, para escrever no estilo inconfundível que só o Quito sabe.

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  4. Desculpa, Quito, ter misturado geometria com sentimentos, que o mesmo é dizer, ter metido os pés pelas mãos, mas acabei de chegar de uma sardinhada de Stº António e é o rescaldo de uma outra mistura do dia de hoje, que é meter a religião com peixe, broa e vinho tinto...

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  5. O vértice das memórias do Quito vem trazer recordações do passado do nosso tempo, quer seja por um ou outro motivo. No fundo, a forma de expôr do Quito passagens da sua vida, faz uma pessoa quase soletrar cada palavra para que nada passe e relance o olhar sobre tudo o que ficou para trás. Já fiz três despedidas, sendo todas elas diferentes e este texto foi-me fazendo lembrar cada uma delas, como se fôssem três corredores paralelos, muito diferentes mas sempre na mesma direcção da vida. Muitas recordações me passarem pela cabeça, pois o texto é muito expressivo. Bem hajas.

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  6. Agradeço terem vindo aqui, confraternizar comigo à volta de uma memória. São excelentes comentários para quem, como eu, vou tentando alimentar a chama da amizade. Este texto, levou horas a fazer. Realinhar as memórias, numa cronologia em ritmo de passeio pela cidade, como passeasse com muitos de vós.

    Para quem escreve, numa lógica de partilha, nada mais agradável que sentir o retorno dessa amizade. Na inversa, o desencanto quando a partilha de afetos esbarra num muro de silêncio.

    Impõe-se aqui que, publicamente, eu transmita ao Rui Felício da minha satisfação de ele me dizer que foi a uma sardinhada. Bem satisfeito fiquei. A razões da minha satisfação não tem mistério. É bom ver um amigo a enfrentar com decisão e coragem uma enorme tempestade.

    Obrigado a todos.

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    1. Sei que posso sempre contar com a tua solidariedade, Quito.
      E, felizmente, com as de muitos outros amigos do Bairro que a preferem manter em reserva.
      Não tenho nenhumas dúvidas sobre isso.
      E, para espanto meu, alguns amigos e vizinhos recentes, como foi o caso de um deles que ontem insistiu contra a minha relutância para ir a casa dele participar numa sardinhada.
      São estes pequenos gestos que me vão ajudando a olhar as nuvens acasteladas que, contudo, não deixarão nunca de me esconder o céu.

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  7. A Amizade é o melhor bem que podemos ter.
    Através dela somos solidários uns com os outros.
    A convivência,as "tainadas",o divertimento e muito mais significam uma forma saudável de estar na vida embora o sofrimento doa dentro de ti...
    Apenas reforço o que o Quito e tu próprio disseram.

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  8. Quito já li o teu texto mas não é fácil ao correr das pena comentar mais esta bela prosa que agora nos brindas!
    Estou em contra relógio a pôr a escrita em dia!
    Vou tentar voltar por aqui.

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  9. Hoje estive todo o dia na Faculdade de Medicina a fazer exames.Vamos lá ver se passo com boa nota!
    Até perguntas me fizeram para testar o "meu vértice da Memória"
    Não anda muito bem pois já tive que reler o teu texto e aperceber-me bem da dimensão do que escreves sobre esses momentos finais que passaste em Estremoz!
    Um abraço

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    1. Não me digas que também te perguntaram o que era o esternocleidomastoideo!... Se souberes isso passas de certeza...

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  10. Olha Quito, não duvidei.
    Vi uma pirâmide com muitas e cortantes arestas, mas culminam num vértice, onde até terás uma linda e brilhante estrela!

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