sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A MINHA NOITE ENCARNADA ...



Pedi desculpa ao Capela ... ao Bentes ...

O meu primo António é do Benfica. Tão do Benfica tão do Benfica, que quando foram ao registo e mais tarde lhe inclinaram a cabeça na Pia Batismal, já se chamava António Vermelho. Ficou pois Vermelho de nome, de coração, e de paixão.

Ano após ano, cresceu debaixo das asas da águia, até que se fez homem e partiu para o Algarve a esgravatar pela vida. Sim, que o Algarve não é só turismo.

Um dia, tropeçou nuns olhos grandes algarvios e enamorou-se. Sempre de olho no pai da rapariga, que ameaçava correr os mocetões que se abeiravam da janela dela, a tiros de caçadeira. Ainda por cima, o homem era do Sporting.

Mas o namoro vingou e deu em casamento. E o Vermelho de batismo, também António de seu nome, assentou arraiais no fundo de Portugal.

Foi num Domingo. Enquanto lá para os lados de Sagres, comíamos a quatro vozes, um robalo escalado do tamanho dos submarinos do outro, o meu primo António estava inquieto.

A sua cabeça já estava lá para os lados de Faro, onde águias e leões mediam forças. Confessou-me que ia ao jogo, com mais dois comparsas algarvios amigos dele e que eram da mesma religião.

Fiquei descansado por ele não me convidar para o prélio, apesar de saber que o recinto estava esgotado. Mais contente fiquei, quando ele me segredou o preço dos bilhetes na candonga, a roçar o obsceno.

Depois, no carro dele, regressámos à base. Eu fui para casa, disposto a ver o jogo pela televisão. Ele, partiu com os outros para a grande batalha, aos solavancos e aos tropeções pela Nacional 125, com o coração aos saltos e os radares da polícia atrás dos muros e em cada esquina.

Após de um banho retemperador, sentei-me a ver o mar e a desfolhar Raul Brandão. Foi então que, a páginas 2O3, li:

“ Lagos, o deslumbramento da baía, e sigo logo de carrinha pela estrada branca, entre amendoeiras e figueiras derreadas. Andam mulheres com grandes chapeletas na cabeça, a apanhar a amêndoa varejada. Às figueiras chega-se à mão. Há algumas que deitam braços, mergulham-nos na terra, criam raízes e tornam a puxar outra figueira. Há-as aninhadas, com um metro de altura e uma roda enorme. Há-as muito velhas, retorcidas, com ramos em novelo. Mas cruzo a estrada da Luz, e logo, de Almadena para diante, a terra muda de aspecto. Estranho Algarve. Deixa de ser risonho e torna-se rasteiro e pedregoso. Inquieta-me …”

Inquieto estava eu. Tinha uma batalha na consciência. Pois se o meu familiar por afinidade foi sempre um amigo leal e do peito,  se em casa dele, durante anos a fio, eu tinha metido no bucho toneladas de carapaus e de sardinhas, tudo regado a tinto e a bagaço do rijo em farras gloriosas, qual a razão de eu não tomar partido pelo seu tão amado clube, em vez de ver o jogo impávido e sereno? Não, eu tinha que tomar uma atitude. Era imperativo! E tomei.

Fui à cozinha, chupei uma pastilha para a azia, lancei os braços ao ar numa prece ao Capela, ao Bentes, ao Ernesto, ao Gervásio e a todos os que já lá estão, pedindo desculpa por aquela pequena infidelidade momentânea, e vesti de alma e coração, a camisola da águia.

Vi o jogo num reboliço e gritei para o Talisca … chuta a bola pá !!!

Mas o Talisca não chutou. Ou chutou torto. Logo ali percebi, que aquela não era a minha noite encarnada. Como um azar nunca vem só, a bola - essa traidora - foi contente e saltitante entrar na baliza do Glorioso. Vi logo que o caso era grave, pois o gatuno do árbitro disse que o golo era a sério, depois dos verdes já terem marcado um na primeira parte que não contou, era só a malta a reinar, como dizem lá por Lisboa.

Exausto, recusei-me a ver os verdes a erguer a taça. Fui ao frigorifico e tirei de lá uma pequena costela de porco panada. E foi irritado a mastigar a talisca , que me lembrei do outro Talisca. O tal que joga no Benfica, que chuta torto ou não chuta nada.
Quito Pereira      

    

10 comentários:

  1. Vendeste a alma futebolista por robalo estafado !!!! Depois evocas respeitosos dos "pretos ", que lá no assento etéreo nem criam acreditar!!!Fingiste bem na troca temporária do verde pelo encarnado .Mas o fenômeno Talisca ajudou-te a erguer a Taça sem ficares mal visto!!! no intervalo o Raul Brandão deu-te Algarve bem amarelo que me custou a ler!!!Coisas da seca. Hitoria . com bons condimentos que os teus dedos bem imprimiramBoa continuação até Setbteo

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  2. Só daqui a 9 dias chega Setembro com as letras todas a menina pecebeu ou deseja um desenho?

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  3. O teu amigo era vermelho da cabeça aos pés mas um academistas virar a casaca por causa de " teres metido anos a fio no bucho toneladas de carapaus e de sardinhas, tudo regado a tinto e a bagaço do rijo em farras gloriosas", com talisca ou não Talisca, nem digo mais, Quito... :)

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  4. Moral da história: o Quito não tem jeito para virar casacas.
    Rico texto, em todos os sentidos. Os ares algarvios inspiram o nosso contador de histórias.
    Toma lá aquele abraço.

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  5. Olá Quito!
    Por simples acaso, vim ao encontro deste blogue, ou melhor, vim trazida pelo interesse por tudo o que se relaciona com o Bairro. Foi uma boa surpresa encontrar textos assinados por ti. Li contos e crónicas e gostei muito. Adiro à tua sensibilidade, partilho da nostalgia de um passado irrecuperável, admiro a tua entrega à escrita. Continuarei a ler.

    Cumprimenta, por mim, a tua família.
    Maria Isabel Marta

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  6. Obrigado pelas palavras, Isabel. Muito do que fui escrevendo neste blog de um pequeno grupo de amigos, foi longe de Coimbra. O facto de estar isolado, na Beira Baixa,, transmitia-me a necessidade de ter algo que me preenchesse a vida. Todas as histórias campesinas têm "atores reais" que conheci. Gente do tempo do volfrâmio. Vidas sofridas.
    Para ti e família, vai também um cordial abraço
    Quito Pereira

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  7. Ainda bem que no Algarve continuas inspirado. Espero é que não mudes de casaca muitas vezes.. Académica é Académica.
    Continuação de boas férias

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  8. E quem diria que o JORGE JESUS viria a treinar o rival de sempre? Em Franca hà uma dica "Il n'y a que les idiots qui ne changent pas d'avis"!!!!
    Quito! Vestir uma camisola vermelha? Francamente! Têm um treinador com um nome que dà sempre azar: VITORIA! E hoje até se lixaram em Arouca! E o Talisca até nem jogou!!!
    Enfim, adorei esse teu texto! Quando vais a Lagos, tàs sempre em forma!!! Grande abraço!

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