sábado, 9 de janeiro de 2016

UMA VARANDA PARA ORIENTE ...



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 Gare do Oriente ...

Não gosto deste retângulo de teclas e de letras. Não gosto deste monstro tecnológico sem alma, que me fere o pensamento envolto em macias nuvens de um Tempo a que não me quero desamarrar, como um barco solto das margens. Não quero e não gosto.

Quero voar. Apetece-me voar. Dar, de novo, asas ao passado. Lembrar quem quero lembrar. Recordar os que amei e me amaram. Mas queria fazê-lo como se fossem notas soltas. De sentir o riscar do aparo da minha pena ferindo ao de leve a folha branca de papel, com a candura de hábitos de um Tempo remoto.

Agora que o calendário vai avançando dia a dia, apercebo-me, de repente, que Lisboa sempre foi uma encruzilhada na minha vida. Como uma estação de comboios como muitas linhas divergentes e convergentes. Local de chegadas e partidas. De sorrisos e de lágrimas de despedida. Assim é a Lisboa que me povoa o pensamento e as lembranças.

No quarto andar do número trinta e cinco da Rua Luís Monteiro, lá para os lados do extinto cinema Max dos filmes fora de horas e da boémia lisboeta, eu olhava da varanda alta, os aviões a rumar à pista do aeroporto da Portela, num ruído ensurdecedor. E eu, tenra criança, gritava alvoraçado para a Crisálida – nome raro - minha pequena prima de tranças loiras … anda... anda ver os aviões …

E ela vinha. Depois corria pela varanda, erguendo os bracitos em algazarra, numa saudação ao pássaro gigante que, com a asa esquerda, parecia querer tocar a grade de ferro forjado daquela bancada debruçada a Oriente. Um Oriente sem ponto cardeal, onde pontuava ao longe na bruma da poluição, a esguia Torre da Sacor com a sua chama pálida e mortiça no topo, naquela que era na época, uma das zonas mais degradadas da capital.

À noite vinha o Bernardino. Subia as escadas cansado, agarrado ao corrimão pintado de verde. Um verde velho e desmaiado, que já se rendia à cor da ferrugem aqui e ali. Bamboleava o corpo mole e atarracado, de cabeça baixa como quem cumpria uma penitência. Ele – o velho Bernardino – era a bondade em figura de gente. De noite rezava e, de manhã, lembro-lhe as calças cinzentas e o tronco nu. 

Inclinado na casa de banho, olhava num pequeno espelho redondo, as faces cobertas de espuma do pó de sabão da barba, que previamente misturava com água morna numa pequena taça de alumínio onde molhava um pincel gasto pelo uso, e uma navalha de cabo cor de pérola com que, meticulosamente, escanhoava a cara, ferindo-se em minúsculos lenhos de onde brotavam pequenos filamentos de sangue vivo.

Depois, como um padre desdobrando os paramentos para a cerimónia litúrgica, vestia lentamente a camisa e um casaco azul de bolsos grandes. Nas calças vincadas com esmero e dedicação por mérito da Etelvina, um cinto negro de fivela larga, que lhe amparava o ventre obeso.

Então, beijava a família e partia para o ruído tumultuoso de Lisboa. Batia a porta devagar, como quem se escapulia para a vida. Apenas o som metálico do ferrolho e o ranger das dobradiças davam o sinal da sua ausência. À noite regressava. Um ritual que se repetia dia após dia, ano após ano. Um carrossel sem luz nem esperança. Somente e bem brilhante, o farol da honradez e da dignidade. De fortuna, apenas o serão em família e as estrelas do Firmamento. 

A Crisálida da minha infância, já não tem as tranças loiras. A pele, fina como cetim, foi sulcada por rugas que são as medalhas da vida. Enviuvou cedo. Ficou de luto, mas luta. Porque Lisboa é a sua cidade. E a única filha que Deus lhe deu o seu mundo.

De Lisboa parti para a guerra. A Lisboa voltei da guerra. Hoje, volvidos tantos anos, a velha Lisboa gentil e generosa, deu-me um pequeno presente. Um presente precioso. Um diamante belo, único e sem preço. Por isso, quando a vida o permite e o garrote da saudade aperta, regresso à Gare do Oriente.

Sempre o talismã do Oriente, quando relembro a varanda da minha infância. Volto à convulsão da cidade gigante e ao aroma de um Tejo banhado de Sol. Na grande capital, demando agora outras paragens, sem  nunca esquecer aquele andar da Rua Luís Monteiro, no coração da grande urbe cosmopolita onde, com os meus olhos de menino, eu tinha uma visão privilegiada e abrangente da zona oriental de Lisboa.

E assim vou consumindo a vida. Desfolhando o passado pétala a pétala e vivendo o presente. Um presente feito de notas soltas, reescrito com a nostalgia de quem se sentou, ainda que por momentos, naquela varanda da memória, olhando o infinito com vista para a Gare do Oriente. 
Quito Pereira   

11 comentários:

  1. O que temos por cá é o costume.
    Lisboa a capital do império,para sair do país e chegar de longes terras ,o resto é o costume.
    Antes famílias com posses , agora e já há uns anos bons, emblemas partidários.
    Bom Ano 16.

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  2. Ei Quito! Agora também tens um neto que te oriente(a), pá! Bom Ano, Amigo.

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    1. E verdade, amigo Carlos Carvalho. É a nossa continuação. Bom Ano igualmente para ti e família, lembrando naturalmente os teus netos, esse bem precioso que tanto te estimam e estimas. Grande abraço ...

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  3. Mesmo sem receber as ajudas de cus(p)to, o Quito voltou a este blogue. A isto chama-se persistência. Presenteou-nos com um texto com as suas impressões digitais.

    Como nesse tempo já pensava criar qualquer coisa de vulto no futuro, olhava para o Oriente a ver se apanhava especiarias vindas da Índia pois ainda não tinha descoberto a farmácia. Só a primita Crisália de tranças loiras, foi capaz de o aturar a olhar para o pássaro de ferro.

    Deixando a brincadeira: que excelente retorno às páginas deste blogue aonde nos transmites a nostalgia que sentes em relação à juventude que viveste e que é extensiva à vida de cada um em situações diferentes.

    Não vai ser tão cedo que me esquecerei da varanda do quarto andar do número trinta e cinco da Rua Luís Monteiro aonde viveste, pois lá viveu uma maravilha da escrita.

    É uma delícia ler-te.

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  4. Os dias de inverno, chuvosos e frios, trazem-nos pérolas elaboradas lá das bandas de Oriente.
    Sensibilidades de alguém que hoje se revê num diamante que reluz e enche a alma de quem tanto o ama!

    Durante 14 anos também eu corria até aos comboios, ao cacilheiro, ao autocarro, até que chegava à outra banda do Tejo.
    Ora ia em SOS, ora para festejar uns aniversários, mas sempre, sempre a sentir os quilómetros que cada vez me pareciam mais longos...
    Valeu, vale sempre correr até às encruzilhadas dos comboios, tocados pelo encanto dos que nos esperam!

    Um bálsamo, voltar a ler-te, amigo Quito.

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  5. E como gosto de ler as tuas memórias da varanda debruçada a Oriente e todas as lembranças que aqui partilhas connosco. Bom ano e boas crónicas

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  6. Como tu, brilhantemente escreves as tuas histórias de vida! Obrigada, Quito, é bom ler os teus textos.

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  7. Juro que não tive tempo de ler com atenção o teu texto, que pelos comentários é excelente e quase que adivinho porque o escreveste.
    Será um testo de outros tempos e que agora te deve saber bem voltar a Lisboa de quando em vez e o motivo é outro bem diferente.De certeza foi por isso que o texto renasceu...
    Mais logo, agora são 3 e 3o da matina...

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  8. maria helena morgadojaneiro 10, 2016 3:08 da tarde

    Gostei do modo expressivo como nos falas das tuas memórias e da ESTRELA que te faz voltar lá para os lados do "Oriente". As maiores felicidades e beijinhos para toda a família

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  9. Eu não tive a sorte de ter uma varanda para ver os aviões, mas mesmo que tivesse, não tenho nenhuma prima Crisálida, mas mesmo que tivesse, não conheci o velho Bernardino, mas mesmo que tivesse conhecido, de Lisboa não parti para a guerra, nem vindo da guerra regresse a Lisboa, mas mesmo que tudo isso me acontecesse, jamais tenho a tua arte para pôr tudo isso no papel, de forma tão simples, bela e profunda, como tu o fazes.

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  10. Bom texto que atravesa o tempo e que orienta bem o Quito novammente para estas paragens...mas agora a razão é de prazer. Um sonho que se concretizou!

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