quinta-feira, 27 de julho de 2017

LAGOS E AS SUAS MEMÓRIAS ...




 O Remexido

Ontem a noite foi morna. Uma calma que se dilui nas entranhas da noite. Daqui, deste ponto alto que me permite uma visão ampla sobre a princesa do barlavento algarvio, olho a escuridão, até que a lua aparece e vai subindo timidamente no céu. Há uma claridade larga que se vai derramando sobre o oceano, até que um mar amistoso se veste de uma tonalidade cor de prata. Recosto-me na cadeira de lona e vou inalando com prazer, o perfume daquele caldo de silêncio. Olho ao longe e vejo uma pequena luz vermelha e intermitente progredindo no Firmamento. Passa na trajetória da lua numa ilusão ótica e mergulha nas trevas da noite funda por cima do Atlântico. Percebe-se que é um avião comercial e, como por instinto afetivo, lembro um amigo que voa agora nas asas dos seus sonhos e, num repente, interrogo-me de quantas almas transportará aquele avião, pedindo a um qualquer Ente Superior que os leve em segurança até ao destino.

Depois recordo João Cutileiro. Agora que regresso ao meu ninho algarvio, ainda não visitei o rei – menino. Mas sempre achei aquela estátua do escultor, magistral de inspiração. Naquela obra simples, está retratado um pequeno pedaço da História de Portugal. De um momento trágico personificado num rosto imberbe e numa armadura desajustada a um corpo frágil sedento de glória. Porque são assim os homens. Sempre o serão. Os estrangeiros, que são muitos por esta zona, jamais perceberão a subtileza da estátua de Dom Sebastião e a sua mensagem. Porventura apenas os mais curiosos o quererão saber.  

Naquela noite calma, um novo facto histórico veio ao meu pensamento. A luta entre Absolutistas e Liberais e a tragédia de José Joaquim Grande, o último condenado por um Tribunal Civil à pena capital em Portugal, pelo assassinato bárbaro de uma mulher, num processo que se arrastou por treze longos anos e a conotação política que foi dada ao julgamento, pelas assumidas simpatias Miguelistas do condenado, que lutou nas fileiras de José Remexido, famoso guerrilheiro algarvio, a quem Dom Miguel distinguiu como Governador do Reino do Algarve.

“O Grande”, assim era conhecido na cidade o sentenciado, foi executado e sepultado em Lagos no Ano da Graça de 1846, assim rezam as crónicas da época. Deste acontecimento e dos 150 anos da abolição da pena de morte em Portugal, esta cidade algarvia fez eco no passado mês de Junho, com palestras na Câmara Municipal, sobre o acontecimento e perfil do condenado Joaquim Grande e a posterior abolição da pena capital em Portugal em 1867, no reinado de Dom Luís.

Sacudo o sombrio evento, remando desesperadamente na procura de um oásis de paz para a minha mente perturbada.

De novo olho o mar de prata. De novo o piar de uma qualquer gaivota voando em círculos, que durante o dia passam pela varanda do meu contentamento, em voo rasante e asas abertas ao vento, porque o céu não tem limite. Também os sonhos não têm fronteiras e Lagos que me abraça há muitas décadas, é o meu cais de memórias. 
 De memórias doces temperadas com o sal de um mar azul e sereno.

Uma plataforma rochosa e robusta de concórdia e de fraterno conviver em laços de sangue perenes, porque a passagem por esta Vida dos meus antepassados, aqui deixou raízes e sementes. Afinal, uma forma de resistir ao Tempo e de, duma maneira bem modesta, Coimbrão de nascença e afeto que sou, me sentir também um pouco filho do mar, tão confortável que me sinto, olhando ao declinar de cada dia, a esfinge austera e intemporal do nosso Navegador, que foi monarca sem trono dos oceanos, não esquecendo também todos os que em viagens sem retorno, ajudaram a construir a identidade de uma nação marinheira. De um país que é o nosso. De uma bela pátria secular.
Quito Pereira   
         

5 comentários:

  1. Não haja dúvidas que os pézinhos no sêco valeram a pena pois esta postagem é muito rica em vários factos como a geografia, a alteração rápida da posição geográfica com o amigo que voa, parte da nossa história com D. Sebastião e as lutas absolutistas/liberais, história de direito com o último condenado à morte e abolição da mesma pena mais tarde.
    A esperança ao saboreares o voo das aves e ao relembrar os antepassados, espero que de facto te tenhas sentido no teu "oásis de paz" para melhor saboreares os momentos futuros.
    Abraço.

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  2. Pronto temos computador remoçado!Sá Lagos podia ter feito este milagre!
    Mas ainda bem saíu mais uma peça dos dedos sobre as teclas que já há muito estavam em descanso, esperando quem lhes desse vida!
    Ajuda do "GRANDE" não terá sido foi sentenciado e não ressuscitou!
    Cargaleiro também não porque percebe mais de estátuas do que informática!
    Tomo como boa nota que fica bem a Lagos onde se"sentenciou" o último condenado à morte em Portugal!
    A noite será morna...e as tardes para ti serão de sorna!


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  3. Caro Chico

    De um livro que me emprestou um familiar, encontrei este testemunho histórico do "Grande" que desconhecia. O livro é de grande qualidade e reporta a 1992, com a historia atual e remota da cidade. Também uns textos de Manuel da Fonseca sobre Lagos em meados do século passado. Um deles não é um texto, é uma pintura feita com o aparo de uma caneta.

    Caro Rafael

    É usual todas as vezes que passo por esta cidade, escrever algo para o blogue, nesta minha colaboração. Não faltei, apesar de ter grandes dificuldades de comunicação.

    Por lapso, troquei no texto o nome de Cutileiro por Gargaleiro. Já por várias vezes em textos anteriores referi Cutileiro associado a Dom Sebastião, mas pensei um nome e escrevi outro por lapso e peço desculpa. Mas tenho que agradecer ao meu amigo Alfredo que deu pelo lapso e me transmitiu. Obrigado Alfredo. De facto foi um engano, mas está reposta a verdade.

    Um abraço a todos

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  4. Abençoada varanda que inspirou o Quito para escrever tão belo texto. Só alguém com muita sensibilidade é que olha a lua e o mar e vagueia, cheio de imaginação e conhecimento, por tanto do presente e da nossa história. Não esqueceu o nosso jovem e amigo piloto, passou pela arte de Cutileiro, pelo imaginário do Rei D, Sebastião, pela lembrança de termos sido dos primeiros países do mundo a abolir a pena de morte, enfim!... Um belo e bem delineado texto à boa maneira do Quito.

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  5. Boas novas sopram do barlavento algarvio!
    Lindo texto, com história e artes.
    Abraços, amigo Quito.

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