O Remexido
Ontem a noite foi morna. Uma calma que se dilui nas entranhas
da noite. Daqui, deste ponto alto que me permite uma visão ampla sobre a
princesa do barlavento algarvio, olho a escuridão, até que a lua aparece e vai
subindo timidamente no céu. Há uma claridade larga que se vai derramando sobre
o oceano, até que um mar amistoso se veste de uma tonalidade cor de prata.
Recosto-me na cadeira de lona e vou inalando com prazer, o perfume daquele caldo
de silêncio. Olho ao longe e vejo uma pequena luz vermelha e intermitente
progredindo no Firmamento. Passa na trajetória da lua numa ilusão ótica e
mergulha nas trevas da noite funda por cima do Atlântico. Percebe-se que é um
avião comercial e, como por instinto afetivo, lembro um amigo que voa agora nas
asas dos seus sonhos e, num repente, interrogo-me de quantas almas transportará
aquele avião, pedindo a um qualquer Ente Superior que os leve em segurança até
ao destino.
Depois recordo
João Cutileiro. Agora que regresso ao meu ninho algarvio, ainda não visitei o rei –
menino. Mas sempre achei aquela estátua do escultor, magistral de inspiração.
Naquela obra simples, está retratado um pequeno pedaço da História de Portugal.
De um momento trágico personificado num rosto imberbe e numa armadura
desajustada a um corpo frágil sedento de glória. Porque são assim os homens. Sempre
o serão. Os estrangeiros, que são muitos por esta zona, jamais perceberão a
subtileza da estátua de Dom Sebastião e a sua mensagem. Porventura apenas os
mais curiosos o quererão saber.
Naquela noite calma, um novo facto histórico veio ao meu
pensamento. A luta entre Absolutistas e Liberais e a tragédia de José Joaquim
Grande, o último condenado por um Tribunal Civil à pena capital em Portugal, pelo
assassinato bárbaro de uma mulher, num processo que se arrastou por treze
longos anos e a conotação política que foi dada ao julgamento, pelas assumidas
simpatias Miguelistas do condenado, que lutou nas fileiras de José Remexido, famoso
guerrilheiro algarvio, a quem Dom Miguel distinguiu como Governador do Reino do
Algarve.
“O Grande”, assim era conhecido na cidade o sentenciado, foi
executado e sepultado em Lagos no Ano da Graça de 1846, assim rezam as crónicas
da época. Deste acontecimento e dos 150 anos da abolição da pena de morte em
Portugal, esta cidade algarvia fez eco no passado mês de Junho, com palestras
na Câmara Municipal, sobre o acontecimento e perfil do condenado Joaquim Grande
e a posterior abolição da pena capital em Portugal em 1867, no reinado de Dom
Luís.
Sacudo o sombrio evento, remando desesperadamente na procura
de um oásis de paz para a minha mente perturbada.
De novo olho o mar de prata. De novo o piar de uma qualquer
gaivota voando em círculos, que durante o dia passam pela varanda do meu
contentamento, em voo rasante e asas abertas ao vento, porque o céu não tem
limite. Também os sonhos não têm fronteiras e Lagos que me abraça há muitas
décadas, é o meu cais de memórias.
De memórias doces temperadas com o sal de um
mar azul e sereno.
Uma plataforma rochosa e robusta de concórdia e de fraterno
conviver em laços de sangue perenes, porque a passagem por esta Vida dos meus
antepassados, aqui deixou raízes e sementes. Afinal, uma forma de resistir ao Tempo
e de, duma maneira bem modesta, Coimbrão de nascença e afeto que sou, me sentir
também um pouco filho do mar, tão confortável que me sinto, olhando ao declinar
de cada dia, a esfinge austera e intemporal do nosso Navegador, que foi monarca
sem trono dos oceanos, não esquecendo também todos os que em viagens sem
retorno, ajudaram a construir a identidade de uma nação marinheira. De um país
que é o nosso. De uma bela pátria secular.
Quito Pereira
Não haja dúvidas que os pézinhos no sêco valeram a pena pois esta postagem é muito rica em vários factos como a geografia, a alteração rápida da posição geográfica com o amigo que voa, parte da nossa história com D. Sebastião e as lutas absolutistas/liberais, história de direito com o último condenado à morte e abolição da mesma pena mais tarde.
ResponderEliminarA esperança ao saboreares o voo das aves e ao relembrar os antepassados, espero que de facto te tenhas sentido no teu "oásis de paz" para melhor saboreares os momentos futuros.
Abraço.
Pronto temos computador remoçado!Sá Lagos podia ter feito este milagre!
ResponderEliminarMas ainda bem saíu mais uma peça dos dedos sobre as teclas que já há muito estavam em descanso, esperando quem lhes desse vida!
Ajuda do "GRANDE" não terá sido foi sentenciado e não ressuscitou!
Cargaleiro também não porque percebe mais de estátuas do que informática!
Tomo como boa nota que fica bem a Lagos onde se"sentenciou" o último condenado à morte em Portugal!
A noite será morna...e as tardes para ti serão de sorna!
Caro Chico
ResponderEliminarDe um livro que me emprestou um familiar, encontrei este testemunho histórico do "Grande" que desconhecia. O livro é de grande qualidade e reporta a 1992, com a historia atual e remota da cidade. Também uns textos de Manuel da Fonseca sobre Lagos em meados do século passado. Um deles não é um texto, é uma pintura feita com o aparo de uma caneta.
Caro Rafael
É usual todas as vezes que passo por esta cidade, escrever algo para o blogue, nesta minha colaboração. Não faltei, apesar de ter grandes dificuldades de comunicação.
Por lapso, troquei no texto o nome de Cutileiro por Gargaleiro. Já por várias vezes em textos anteriores referi Cutileiro associado a Dom Sebastião, mas pensei um nome e escrevi outro por lapso e peço desculpa. Mas tenho que agradecer ao meu amigo Alfredo que deu pelo lapso e me transmitiu. Obrigado Alfredo. De facto foi um engano, mas está reposta a verdade.
Um abraço a todos
Abençoada varanda que inspirou o Quito para escrever tão belo texto. Só alguém com muita sensibilidade é que olha a lua e o mar e vagueia, cheio de imaginação e conhecimento, por tanto do presente e da nossa história. Não esqueceu o nosso jovem e amigo piloto, passou pela arte de Cutileiro, pelo imaginário do Rei D, Sebastião, pela lembrança de termos sido dos primeiros países do mundo a abolir a pena de morte, enfim!... Um belo e bem delineado texto à boa maneira do Quito.
ResponderEliminarBoas novas sopram do barlavento algarvio!
ResponderEliminarLindo texto, com história e artes.
Abraços, amigo Quito.