Derramado sobre a cadeira do meu conforto, olho o jornal.
Apenas olho, porque as notícias cansam de repetitivas. Atiro com o diário para
a cadeira do lado e observo os barcos aparcados na Marina. São barcos grandes e
pequenos para todos os gostos e bolsas. Mas há os outros. Os que são o sustento
de muita gente ligada ao turismo. São coloridos e festivos, artisticamente
engalanados para atrair veraneantes em passeio pelas grutas ou olhando ao largo
o prazer de conviver com golfinhos irrequietos. Ou ainda aqueles que gostam da
pesca de cana das espécies graúdas de alto mar, de contornos especializados. Os
mais simples é vê-los chegar e partir, de coletes de cor amarela ao pescoço
para prevenir qualquer incidente no oceano. Vão e vêm como as marés. Chegam de
boné na cabeça e a pele vermelha congestionada e abrasada deste sol algarvio.
Estou absorto neste desfile de gente tão diversa portuguesa e estrangeira,
quando uma menina de braço tatuado se acerca de mim. Pergunta-me gentilmente o
que pretendo beber. Escolho um sumo da boa laranja algarvia. A cerveja fica
para depois, quando lhe pedir o almoço. É ali, com a minha consorte, que por
vezes atracamos também a nossa nau de afetos com a cidade - marinheira. Olhar
aquela parafernália de mastros emaranhados e de bandeiras ao vento, e ver ao
longe mas também ali tão perto a cidade histórica, que é nosso refúgio em
diferentes épocas do ano.
Almoçamos ao ritmo do veleiro que parte. Vai lento, talvez a
meditar no esgrimir de argumentos com as ondas e a espuma alva destes dias de
verão. Enquanto a minha companheira vai folheando uma revista, percebo que ela
não tem pressa. Como já são muitos anos de tarimba, se não me acautelo vou
passar a tarde a olhar para montras num entrar e sair de lojas do meu enfado.
Tenho então que tomar uma decisão e tomo – atiro com as chaves do carro para
cima da mesa e exclamo numa amabilidade imperativa: encontramo-nos em casa!
Parto. Percorro a calçada deambulando entre tendas de roupa e
dos mais diversos artigos. No largo que é sala de visitas, cumprimento o
Sebastião de Cutileiro e penetro numa dependência bancária, em busca duma
máquina automática e dos euros do meu contentamento. Vã e rápida ilusão. Os
vikings que assolaram a cidade raparam tudo. Digo entre dentes algo de
vernáculo de acordo como meu estado de espírito e volto para o sol castigador
que inunda o largo. Ponho-me a meditar naqueles dois quilómetros sempre a subir
até chegar a casa sob um sol a pino e olho a praça de táxis da minha salvação.
Nova ilusão. Os vikings tinham tomado os táxis todos de assalto e já só me
resta esperar. Enquanto aguardo sentado num pequeno banco de jardim, olho o
carrossel inerte e sem sorrisos de criança. Apenas os tigres, os cavalos e as
girafas se riem, a aguardar os seus pequenos clientes de um mundo de ilusão. Ao
lado, africanos tentam vender todo o tipo de mercadoria espalhada em mantas
pelo chão. São vestidos femininos, estatuetas em madeira, carteiras de senhora,
relógios e braceletes de aspeto apelativo que ostentam nos dedos grandes e
esguios, naquela improvisada ourivesaria de rua. As suas túnicas coloridas, largas e compridas,
lembram-me os mistérios de África. Nos seus olhos grandes e expressivos,
encontro a paciência e a sabedoria de quem sabe esperar. Porém, é uma bizarra
figura que me atrai a atenção. É um homem magro, de aspeto mal cuidado e rosto
envelhecido. De estranho, é que dorme profundamente sentado em cima do selim de
um cangalho de bicicleta, os pés nos pedais e braços cruzados sobre o peito.
Para remediar aquele equilíbrio instável, tem o ombro esquerdo apoiado no
tronco de uma árvore. Fico a olhar aquele inusitado quadro, até que acontece o
provável: a bicicleta resvala e arrasta consigo o homem que desamparado bate
com violência com a cabeça no chão. Grande alarido entre os africanos que,
antes de mim, já o tentam socorrer numa roda de solidariedade. Combalido, o
pobre homem agarra a cabeça com as mãos num esgar de dor. Lentamente vai
recuperando até que, para surpresa minha, volta a montar na bicicleta e, de olhar
vazio, fica a ver escoar-se o Tempo e a Vida. Dos turistas que observavam
aquele momento, ninguém se mexeu. De todos, lembro aquele homem gordo de bochechas
afogueadas, que se lambuzava com um gelado que com o calor lhe escorria pela
camisola estampada com um musculado e enérgico Super Homem - fraco Super Homem.
Entro no táxi e digo ao motorista onde quero ficar. Indico - lhe
com precisão o local e à guisa de conversa, vou dizendo que há muitos anos
conheço a cidade. A conversa não é inocente. Quero que ele entenda que eu não sou
um turista acidental a deambular pela urbe em passeio forçado ao sabor do rodar
do taxímetro e dos euros. E assim, pelo caminho mais curto, cheguei ao meu
porto de abrigo.
Agora, a coberto da canícula e de janela da varanda aberta de
par em par vejo o mar e o céu azul, onde
as gaivotas voam em círculo no seu jeito caraterístico de comunicar entre elas
em tempo de acasalamento, enquanto vão riscando o céu em coreografias sublimes
numa dança flutuante ao sabor de um Tempo e de um Vento que não se esgota na
sua rota intemporal.
Logo, mais logo, quando a noite lacobrigense chegar, as ruas
medievais enchem-se de forasteiros das mais diversas origens, perante a
indiferença de um Infante vestido de bronze e sentado num pedestal erguido em
pedra alva, a olhar o mar que lhe traçou o Destino e a História. É o seu mar. É
o meu mar.
Q.P.