Na Rua Augusta, como num labirinto, ia contornando aquela multidão de pedintes ou vendedores de inutilidades, que se me dirigia de mão estendida. Uma mulher, mais afoita, espetou-me na lapela uma medalha com uma fitinha verde e vermelha, pedindo-me esmola para a Nossa Senhora. Devolvi-lhe a medalha e recusei a esmola, deixando-a para trás, a resmungar entre dentes qualquer coisa ininteligível.
Mais à frente, defronte duma luxuosa montra, um homem de meia idade tocava num violino uma melodia suave, algo deprimente. A dignidade da sua imagem destoava dos mendigos que enxameavam a rua. Fixei o olhar naquele rosto que não me era estranho e aproximei-me para depositar uma moeda na caixa de cartão que jazia a seus pés.
Subitamente, o homem parou de tocar e virou a cara. O seu semblante denotava uma indisfarçável vergonha. Constrangido, num lampejo, lembrei-me dele. Era o Sr. João, solteiro e sem filhos, que tantas vezes vi actuar integrado na orquestra que executava as partituras dos espectáculos de ballet do São Luis, em que a minha filha entrou nos seus últimos anos do Conservatório.
Com a crise, perdera o emprego que tinha exercido a recibo verde, e na aflição de tentar pagar as dívidas dos seus créditos ao consumo, recorreu a um agiota de um 3º andar da Rua dos Fanqueiros que lhe cobrou juros altíssimos pelos capitais emprestados.
Esclareci-o que a usura é crime definido no Código Penal. Que os juros não podem ultrapassar o limite legal. Que fica sujeito a pena de prisão todo aquele que cobrar juros desproporcionados, provocando conscientemente a ruína da vítima. E que, por isso, devia apresentar queixa do agiota.
Disse-me que já o fizera, mas que o processo corria lenta e placidamente no meio de milhares de outros.
Entretanto, tinha que ir sobrevivendo.
É nos tempos de crise que os homens e os Países mostram a sua face mais cruel, devorando, como abutres, a carne putrefacta dos moribundos...
Rui Felício
Publicado em 30-11-2010
Publicado em 30-11-2010
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