segunda-feira, 6 de maio de 2019

QUEIMA DAS FITAS

A propósito
Se soubesse no que a coisa ia dar, não teria vindo.

Há um pequeno livro de Fernando Assis Pacheco que retrata a vida de um emigrante galego na Cidade de Coimbra, na segunda década do século passado.
Chama-se, a obra, Trabalho e Paixões de Benito Prada e acedi-lhe através de um volume da coleção Livros RTP, na edição nova.

O livro encerra em si todas as carateristcas da literatura picaresca, aquela  literatura em que o herói assume a sua condição humana plena e as peripécias da história são exatamente os eventos menos prestigiantes, aqueles que nos fazem realmente humanos e não semideuses. Sendo Benito Prada imigrante e galego numa cidade de ilustração, permite ao autor focalizar internamente, pelos olhos do estrangeiro, aquilo que de mais estranho a nossa cidade apresenta: uma divisão inconcebível, aos olhos de uma república democrática, em pleno século XXI, entre os futricas e os estudantes.

É evidente que a cisão entre os dois mundos foi mudando de cor, mas continua a existir. A divisão sociológica e geográfica que prevaleceu até meados do século XIX não desapareceu de todo. Até então, aos estudantes estava reservada a cidade dos estudos dentro do espaço das couraças e cuja porta de Almedina era cerrada no cair do sol. Se um aluno fosse apanhado fora do seu domínio pela guarda real, era imediatamente preso e entregue à guarda académica, que o colocava umas horas ou uns dias na prisão, nos calabouços da biblioteca Joanina. Mas no convívio diurno, o estudante era rei e senhor de uma cidade que existia para o servir e quase tudo lhe era permitido, perdoando-se-lhe a boémia e o excesso.

E hoje, como se vive essa coexistência? Se é verdade que o mundo estudantil e o futrica convivem no mesmo espaço urbano, será que sociologicamente essa convivência é pacífica?. Perguntem isso mesmo aos residentes da alta, especialmente aos vizinhos da Sé Velha, perguntem às vendedeiras do mercado quando lhes assaltam a banca para roubar o nabo, perguntem ao dono da tasca no dia do cortejo da latada ou da queima, que prefere fechar  para não ter de ver os estudantes a sair pela porta sem pagar o consumo.
Isto tudo a propósito de um comentário breve ouvido a um pai de família num dos cortejos académicos. Esse pai, que tinha vindo ver o desfile onde o seu rebento desfilaria em cima do carro - um fitado portanro- ao ver o estado em que o filho se encontrva, embebedando-se exaltadamente, apenas pôde dizer:"se soubesse que a festa era esta futrica, tinha pensado duas vezes antes de vir".

Por Antonino Silva,

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