terça-feira, 28 de maio de 2019

O DOM JOÃO DE CASTRO ...







Se esta fonte da Sereia falasse ...

Não, não é a essa figura histórica que me estou a referir. Recordo apenas aquele Colégio lá pelos anos setenta e oitenta do século passado que, como alguns outros, fazia parte do ensino particular em Coimbra. Ali, na Rua de Tomar e em frente aos muros da Penitenciária, o Dom João de Castro era um edifício de dois andares com um grande portão de ferro na entrada, que lhe dava um aspeto respeitável e atraente. Atraentes, porém, não eram alguns dos seus alunos e um leque de professores bizarros e pacientes. Hoje, olhando à distância aquela simbiose entre docentes e discentes, daria para mergulhar num trabalho científico daquilo que se entendia que fosse um local de ensino que o Dom João de Castro era, mas não só. Começando por analisar as salas de aula, tal como o corpo humano se divide em cabeça tronco e membros, as ditas salas também se dividiam em três partes: nas duas primeiras filas junto à secretária do professor, estavam os alunos com toda a atenção às matérias. Nas três filas seguintes, os discípulos que davam uma relativa atenção às disciplinas, mas que discutiam acaloradamente entre si quem eram as alunas mais fisicamente atraentes do Colégio Alexandre Herculano, mesmo ali ao lado. As quatro últimas filas de carteiras eram uma espécie de clube recreativo, onde se comiam pevides e tremoços, se liam jornais desportivos e revistas com inconfessáveis matérias que tinham pouco a ver com manuais de etiqueta. E era ali, precisamente na cauda do pelotão, que se encontravam os alunos de uma incultura apocalíptica, capazes de afirmar convictamente que a Revolução Francesa foi uma batalha muito sangrenta, que o Infante Dom Henrique mandou fundar o Pinhal de Leiria e,  sem pestanejar, que o rio Douro desagua em Barcelos. No clube recreativo e falando dos professores, quem reunia o consenso geral era a professora de História Universal. Não pelos seus conhecimentos académicos ou a forma de explicar a matéria, mas porque era nova, tristemente viúva e tinha uma cara de anjo de fazer derreter os pardalões que, de olhos cerrados, se afundavam nos pensamentos mais obscuros. O mais temido era o professor de Física - Quimica. O homem tinha mau génio, talvez frustrado por não lecionar na Universidade de Coimbra, porque não morria de amores pelo Doutor Oliveira Salazar e da Faculdade foi chutado por não lhe admitirem liberdade de pensamento. Viu-se então compulsivamente a dar aulas no ensino particular e a aturar uma franja de alunos de comportamento patológico. Por vezes, o dito docente descia também ao nível da Idade das Cavernas e, de vara na mão em jeito de cacete, corria o Jardim da Sereia de mão pesada, a tentar zurzir umas cacetadas nos alunos faltosos, mais interessados em aulas de anatomia comparada com as namoradas nos bancos do jardim, do que a discutir as Leis de Newton. Desse grupo excursionista de alunos que invadia as galerias das salas de aula, dois davam mais nas vistas. O Toni, rei da noite de Coimbra e da pancadaria, que se gabava de numa zaragata na Queima das Fitas ter conseguido subtrair a um polícia o cassetete, que tinha como troféu no quarto de sua casa, no meio de penicos de esmalte, sinais de trânsito roubados nas madrugadas coimbrãs e páginas de revistas de mulheres nuas coladas nas paredes com fita adesiva. O outro era o Zé Homem. Filho tardio, o Zé tinha um problema insolúvel – claustrofobia. Por isso, não aguentava uma hora sentado numa sala de aula e era um faltoso compulsivo. O pai, já reformado e alertado para o problema, fazia sentinela junto à porta do Colégio de mãos atrás das costas, gabardina cinzenta até aos pés e chapéu preto de aba larga na cabeça, a fazer inveja a qualquer inspetor a Gespato. A intenção era que o filho não se ausentasse do Colégio. O que ele porém não sabia era daquele pequeno – grande pormenor de que o Estabelecimento tinha nas traseiras uns arbustos por onde se podia furar e ter acesso à Rua Alexandre Herculano. E assim, enquanto o progenitor vigilante guardava a ferro e fogo a porta do Colégio, o Zé Homem, todo transpirado, jogava renhidas partidas de ping - pong na Associação Cristã da Mocidade, ao fundo da dita Rua Alexandre Herculano. Manda a verdade afirmar aqui que a Direção do Colégio e numa tentativa desesperada de catequisar os desavindos, entendeu introduzir a disciplina de Religião e Moral no menu das cadeiras lecionadas e para isso contratou um padre. O pároco, grande e coxo, apoiava – se numa bengala e, para cativar a simpatia dos matulões, teve a ideia peregrina de começar as aulas falando de sexo de uma forma elevada e civilizada. Foi imprudente, abriu uma tal Caixa de Pandora de tantas perguntas obscenas e impertinentes que lhe foram dirigidas, que à segunda aula rendeu – se e pediu a demissão no que foi prontamente atendido. Consta que foi embora a benzer-se e prescindiu dos honorários das duas aulas frustradas e aceitando as desculpas do padre Bento, heroico diretor do colégio naquela sua missão espinhosa e de penitência. O Colégio viveu, sobreviveu e um dia morreu, para dar lugar a uma loja de móveis. Mais tarde, na rota da vida, dali saíram generais angolanos, médicos, advogados, engenheiros e gente das mais variadas profissões. Só não consta que alguém tenha seguido a vida eclesiástica.
QP     

7 comentários:

  1. Andei no D.João de Castro uns anos antes de ti ( no inicio da década de 60 ), mas a tua descrição é tão rigorosa que me senti a recordar com exactidão o tempo que por lá andei.
    Foi um choque a minha entrada lá vindo do D.João III da época do Pulga, do Fígado,do Silveirinha, da Foca, do Galvão e de tantos outros que não nos permitiam veleidades.

    Mas o D.João de Castro oferecia as vantagens de ser paredes meias com o Alexandre Herculano recheado de meninas que do alto dos seus muros nos sorriam e despertavam a libido.
    Foram meus colegas de então os nossos saudosos e comuns amigos Chico Duarte e Abílio Soares.

    Do que tu não falas, certamente por no teu tempo já terem dado a alma ao Criador, é de duas irmãs solteironas que viviam numa casa apalaçada a escassos metros do Colégio.

    Seduzida por algumas juras de amor que lhe dirigiamos as vezes franqueavam as portas da sua alcova e enchiam nos de guloseimas, sorrisos e olhares concupiscentes.

    Um abraço meu amigo

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    1. É verdade, meu caro Rui. Tu tiveste uns protagonistas e eu outros, um pouco mais tarde. Realmente, não conheci as manas solteironas. Fica -me um sentimento de saudade de professores e alunos, mesmo reconhecendo as particularidades de alguns a roçar o absurdo. Por causa do Mendes ( hoje médico) fui a gancho para esquadra que havia mesmo ao lado do Colégio Alexandre Herculano (lembras-te?), no inicio da descida da rua. O Mendes, junto ao ACM, disse a uma aluna que ela era um pastel que ele comia com agrado e ela fez queixa na esquadra. Veio um piquete e eu sem culpa nenhuma fui na molhada. Depois de soltos por intervenção do Teles Grilo, professor de Matemática e numa cena de Parque Mayer, o Cunha travou-se de razões com o sentinela e deu-lhe um estalo e voltámos a ficar detidos mesmo antes de termos saído. Tudo esclarecido, apenas o Cunha ficou detido por agressão. Também por causa do Valera e outros, hoje general angolano na reserva, a coisa podia ter sido mais grave e uma ameaça séria do Diretor da Penitenciária de Coimbra. Valeu o padre Bento, que com a sua capacidade de apaziguar as coisas, impediu que alguns fossem tomar o pequeno - almoço à Penitenciária, o que era merecido, diga-se de passagem. Mas essa é uma estória que um dia te contarei pessoalmente. Realmente, por vezes, a realidade parecia ultrapassar a ficção. 5O anos depois revi o Valera. Veio aos HUC e era muito amigo do Tonito. Fomos almoçar e comemos pouco e rimos muito. Ele ria tanto das peripécias do Colégio que eu estava a ver que lhe dava uma "coisa má" ! Mas está gordinho e não é nada daquele tipo magro e truculento que conheci. Os anos vão-nos moldando a vida e o caráter.

      Um abraço, meu caro Rui !

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  2. Sempre houve algo em ti que me dizia que já tinhas cadastro...
    E não é por agora te declarares inocente e injustamente metido na alhada que te retira a culpa porque, como bem sabemos, naquele tempo as forças da autoridade eram infalíveis nos seus juízos.
    De qualquer modo o crime já prescreveu...

    Adorei referires o Teles Grilo.
    Era gaseado mas boa pessoa.

    Quanto à esquadra onde foste dentro lembro-me bem dela.
    À cautela passava de largo, não fosse o diabo tece-las...

    Um grande abraço meu amigo Quito

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  3. As peripécias do amigo Quito são para mim desconcertantes, pois nunca o imaginei metido em sarilhos com a polícia!
    Aventuras de jovens de ontem e de hoje.
    Enquanto aluna no Dona Maria pertenci sempre às da primeira fila, pois pela ordem alfabética, tinha entre os primeiros quatro números.

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  4. Texto bem divertido. Momentos que se tornam inesquecíveis.
    Também tive bons momentos tanto no Colégio São Paulo que ficava no Bairro Sousa Pinto como no São Pedro que não ficava longe do D. JOÃO DE CASTRO... Mas que além das meninas do Alexandre Herculano ainda tínhamos quase paredes meias o Colégio Santa Cruz.
    Bons tempos

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  5. Num acesso de saudosismo fui procurar o Colégio Dom João de Castro onde fui aluno em 66/67/68.
    Fiquei muito feliz principalmente pelo texto de Quito Pereira ( que não conheço).
    Além do Padre Bento, que raspava o cabelo nos cantos da testa,( era meu vizinho na Conchada), lembro do Prof. Queiroz de Química que ficava aprontando uma fina cana da Índia para nos atingir nas pernas quando errávamos lá perto do quadro preto.
    Foram tempos inesquecíveis cujos amigos de sala nunca mais vi em função de ter emigrado para o Brasil em 1973 após 4 anos na Aviação na Ota e em São Jacinto.
    Anualmente vou a Portugal e em especial a Coimbra onde vive um irmão ex professor do Liceu D. João III.

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