terça-feira, 21 de maio de 2019

DO SER AO PARECER VAI UMA LARGA JORNADA

Do ser ao parecer vai uma larga jornada
                                                                                                                                                                 A vida moderna exige de nós um conjunto de comportamentos que, em princípio, correspondem a outras tantas atitudes que lhes subjazem. Geralmente, os comportamentos apropriados revelam atitudes corretas e aqueles que estranham ou escandalizam têm por debaixo atitudes impróprias de boa pessoa. Contudo, algumas vezes, determinados comportamentos (entendo por comportamento a face visível, observável da existência passível de julgamento) têm subjacentes atitudes bem diversas, quase como se entre o ser e o fazer houvesse uma larga jornada. Imaginemos aqueles seres humanos altruístas que, para salvarem um seu semelhante de uma situação de escravatura, tirania ou xenofobia, tivessem de assumir comportamentos parentemente iguais aos dos opressores para, disfarçadamente e sem denunciarem as suas intenções, poderem atingir o seu objetivo. A história tem diversos destes casos e a literatura engendra outros com o mesmo propósito: provar que a avaliação de um comportamento pode ser baseada em falácia e em falibilidades.
                                                                                                                                                              Nas vidas mais simples isso também acontece e vem-me à ideia um episódio que o meu pai me contava. Na aldeia encravada num das encostas da serra do Montemuro, havia uma família bem pobre cujos filhos eram subtilmente apontados e rejeitados nas brincadeiras da escola e noutras brincadeiras de rua, só porque não eram ricos nem remediados. No recreio, os outros meninos lanchavam o que a mãe lhes preparava e eles não; mas tinham aprendido a não ‘ougar’ e, para sofrerem menos, afastavam-se, continuando a brincadeira e afirmando que não tinham fome. Por desconfiança e acusando-os de pobretanas os outros começaram a evitar brincar com eles e, como lhes diziam as mães, a afastarem-se de gente que “nem pão tem para comer” e que mais tarde ou mais cedo lhes iria pedir parte da merenda. Isso magoou profundamente as crianças e, por amor delas, a mãe, que via os meninos tristes sem terem deixado de ser pobres. Então, o génio de mãe resolveu divorciar o ser do parecer e fez a promessa aos filhos de que não seria por aquilo que comiam que seriam estigmatizados.
                                                                                                                                                                 A partir de então, fosse ou não em épocas de maiores dificuldades económicas e de carestia, quando os filhos brincavam com tantos outros meninos no largo do cruzeiro, na descida para o Fojo, dirigia-se-lhes, recomendando-lhes que fossem merendar a casa, porque tinha deixado na mesa pão com uma iguaria qualquer. Aquilo que os seus pares ouviam elevava-os na sua consideração e a integração no grupo era cada vez mais consensual: quem tem petiscos para comer é porque não é pobre e não vai pedir. As brincadeiras decorriam então felizes para todos.
                                                                                                                                                          Visto assim de longe, o comportamento desta mãe, diremos nós, assentava numa mentira e seria, por isso, reprovável, pois aquilo que exteriorizava era um caso claro de exibicionismo; mas talvez não seja assim, porque, após a chamada da mãe, os meninos iam saltitantes para casa e, chegando lá, encontravam na mesa o habitual prato de sopa pobre que, duas ou três vezes ao dia, comiam e sabiam que, mesmo assim, tinham de dar graças a Deus por não passarem fome. Eles sabiam que os outros meninos com quem brincavam, esses sim, tinham nas mesas pão com marmelada, geleia e queijo, mas, para eles, aquela sopa era o pão com presunto que, devido à atitude da mãe, lhes dava o livre acesso ao mundo da brincadeira e da igualdade.

Texto de Antonino Silva

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