Foi numa tarde de Abril que cheguei a uma cidade que não conhecia. Tinha uma estação de caminhos de ferro e uns carris que desapareciam
nas planícies de ninguém. O comboio era modesto e desconfortável, com apenas
duas carruagens que balançavam ao sabor de uma paisagem de solidão. Recordo, que
ao chegar ao meu destino, a composição parou em grande chiadeira. Comigo
desembarcaram apenas um outro militar e um padre e, da outra carruagem, mais
três passageiros que, apressados e cansados da viagem, arrastavam as suas malas.
Dentro da estação e do lado esquerdo, estava um homem anafado e de camisa azul
que, do lado de lá da vidraça, vendia bilhetes aos passageiros que não havia. A
seu lado, um pequeno rádio portátil que trazia notícias de outros mundos e
assim se diluía o tempo no marasmo dos dias. Passado aquele breve momento de
agitação, a gare ficava de novo refém do silêncio da planície. Depois, na
conquista da cidade, o empedrado dos passeios levava - nos a uma praça ampla,
que no verão era batida por um sol impiedoso. E uma feira semanal, onde os
tendeiros vendiam a sua mercadoria regional aos poucos turistas que apareciam.
Realmente, naquela época recuada, Estremoz era terra de militares. De cidadãos
fardados de verde, a receber instrução para partirem para as três frentes de
guerra. A hospitalidade das gentes esbatia - se na sombra da tragédia de uma
pequena cidade simpática, a quem foi imposto o anátema de bastidores da guerra.
Na verdade e no meu caso, Estremoz foi apenas o prefácio de um livro de muitas privações, sofrimentos e dramas, que duraram mais de dois anos em África. Ali, naquela
praça apelidada de Rossio, existia e existe um Café de nome apelativo - Águias
de Ouro. Era próximo do Regimento de Cavalaria e lugar de encontro de oficiais
e sargentos milicianos. Recordo o estabelecimento escuro e amplo, com
mobiliário pesado e sombrio. As mesas eram de tampo castanho e as cadeiras
desconfortáveis, como se aquele local de lazer e convívio fosse uma espécie de
extensão do quartel. Mas era ali que tentávamos aliviar as nossas penas, sempre
que as folgas permitiam sair dos muros do velho Convento datado do século XIII
e adaptado a fins militares. Mas nem sempre o “Águias de Ouro” era a nossa
carta de alforria. Por vezes, aparecia por lá um Coronel de Cavalaria que, do
alto dos seus galões, fazia alarde da sua autoridade para deslumbrar meia dúzia
de clientes que ocupavam as mesas na troca do preço de um café pelo fresco da
ventoinha gigante que girava no teto a agitar as tardes de calor. Ele, o tal
Coronel, comandante do meu e nosso batalhão quase de partida para África, era
pouco ou nada estimado pelos seus inferiores. Havia um fosso inultrapassável
entre ele e os seus comandados. Vaidoso, exibia as suas fitas vermelhas
e amarelas a pender da boina como símbolo da Arma de Cavalaria. As botas altas
de equitação e um pequeno bastão compunham o personagem, que não tinha pejo em
interpelar um qualquer militar sobre o aprumo do fardamento ou até de um corte
de cabelo menos cuidado. Desconhecia aquele oficial superior, que um líder se
impõe sem se impor. Flui dele uma
natural liderança, que não se conquista
a golpes de autoritarismo. Ficou para
sempre na nossa retina a positividade do capitão da companhia que passou à
reserva como general e que, passadas tantas décadas, com ele continuamos a
conviver. Um homem que nos chefiou e foi respeitado até hoje pelas suas
qualidades como nosso comandante em tempo de guerra e pelas suas qualidades
humanas intrínsecas. Mas é naquele baluarte de café e restauração, que ainda
repousam algumas das minhas memórias alentejanas. Hoje, sei que o “Águias de
Ouro” lá continua na Praça do Rossio. Não sei se já mudou de mobiliário. Nem
tão pouco sei se a ventoinha avantajada do teto do Café ainda gira ou se o ar
condicionado matou aquela relíquia do passado. O que sei é que aquele bastião
de memórias pardas resistiu ao tempo, e que a cidade readquiriu o seu carisma e
a tipicidade de um Alentejo que encanta pelo perfume e pela melancolia das suas
planícies e dos seus sobreirais, que o odor fétido da guerra não matou.
QP
Só espero que Estremoz seja hoje uma cidade adaptada e com vida própria. Muitas outras que viviam quase exclusivamente do vai-vem de militares, hoje são grandes cidades.
ResponderEliminarQuanto ao Coronel de Cavalaria, estou a imaginar o típico cagão, que pensa que é alguém, mas que na realidade não é ninguém e vão mandar para o quartel, para se vingarem do que não podem fazer em casa. Já conheço o género!
Mais um excelente texto. Desta vez com o cenário de Estremoz que fica na lembrança de muitos soldados como a antecâmara de um partida para as guerras coloniais. É provável que hoje em dia já seja um cidade diferente e mais evoluída. Mas os tempos idos ficam sempre na lembrança de quem por lá passou... E nos tempos que se seguiram, estes já no teatro de guerra.
ResponderEliminarGostei de ler esta postagem passada no meu Alentejo.
ResponderEliminarO tal Café no Rossio está lá com uma esplanada no exterior... Vi na nete há dois anos estive en Extremoz ia comprar um Capote Alentejano..
Um abraço ..