A estação dos comboios é singela. Lá dentro, lá dentro da
estação, há um balcão envidraçado. E, atrás do balcão, um homem de cabelo
grisalho e camisa azul, que se cinge ao seu porte atarracado, olha o viajante
suspeito. O viajante sou eu. Mira-me na desconfiança se irei ficar ou partir,
mas a pequena mala que levo na mão denuncia-me. Distraidamente, vou olhando
para a banca dos jornais. Leio os cabeçalhos, na esperança de encontrar um
motivo de interesse que me preencha as cerca de três horas de viagem. Da
senhora que vende todo o tipo de verdades, mentiras e utopias, apenas vejo a
cabeça que emerge por entre uma montanha de revistas de capas apelativas e
cautelas de lotaria presas por uma mola, a tentar vender a sorte ou a ilusão.
Sentada numa cadeira de madeira, a idosa ignora-me. Sabe, pela experiência de
muitos anos, que a sua pequena banca é apenas uma montra para aqueles que, de bagagem
na mão cruzando destinos, lançam um olhar vagabundo pelas letras gordas dos matutinos,
de cabeça pendente sobre o ombro para não perderem pitada da glória dos ases da
bola ou de um qualquer artista em dificuldades que vendeu retalhos da sua vida
a um manipulador de palavras cinzentas e de sonhos desfeitos. Ela, a senhora
que vende jornais, continua sentada. Vai fazendo a sua malha, com duas agulhas
que esgrime com destreza, enquanto vai puxando o fio de lã amarelo que tem
preso por um alfinete vistoso à gola da blusa florida que veste com aroma a primavera.
Não a desiludo. Compro um jornal, enquanto vou dando uma vista de olhos pela lotaria.
Aposto na terminação cinco por cinco euros. É o preço da minha ilusão. Depois
dirijo-me ao postigo da venda de bilhetes. Um vidro separa-me do funcionário
que, com uma voz que parece vinda do além, me pergunta o destino. Peço uma passagem
para a capital, que me é servida numa placa giratória em alumínio. Dinheiro
para lá, bilhete para cá, para precaver qualquer eventual assalto. Uma
sociedade barricada nos seus próprios medos e angústias como antigamente,
quando se ostracizava os doentes com lepra. Lá fora, o cais de embarque está vazio.
Apenas vejo uma mulher pequenina, vestida de negro, sentada num banco de ripas.
Veste por fora o que a forra por dentro – o luto da alma. Vagueio pela plataforma,
aguardando o comboio. Fixo as linhas paralelas e um emaranhado de carris que se
cruzam sem se perceber o destino. Olho para norte e a linha parece diluir-se no
infinito. Olho para sul e a linha é engolida já ali, no meio do casario da
cidade. Apenas o enorme depósito da água, pintado de branco, parece ser a
sentinela fiel dos dias que correm ao sabor de um Tempo que amarra o viajante
ao ferrete dos ponteiros do relógio cruel, que lhe conta impiedosamente as
horas, os minutos e os segundos do palco efémero da Vida. Na bruma da manhã acolhedora,
olho o dorso do comboio que se avoluma à medida que se aproxima da estação. Vem
sinistro, no seu rodado metálico, apitando na procura de qualquer transeunte
distraído. O altifalante da gare vai anunciando a sua chegada na sua voz
roufenha. Depois a composição imobiliza-se e, em curto espaço de tempo, o silvo
agudo da partida. Sento-me só, num compartimento confortável mas sombrio.
Castelo Branco ficou agora para trás e já só vislumbro a plácida melancolia dos
olivais. Lá mais à frente, irei encontrar as Portas do Rodão e até o Castelo de
Almourol me saudará, sitiado pelas águas mansas do Tejo. Lá longe, na capital,
acordarei da minha letargia, com o estrondo da grande cidade. Da gente que se
cruza comigo de semblante fechado, gladiadores de um tempo que lhes foge na
arena diária do nascer e do renascer. Mas voltarei. O comboio que me levou ao
encontro da urbe dos mil encantos e desencantos, rumará de novo à Beira -
Baixa. E ali, ao anoitecer, o relógio da Estação de Castelo Branco, com os seus
ponteiros negros, lá estará à minha espera, indiferente à minha saga de romeiro do Tempo. Porque ele – o Relógio – apenas tem o compromisso de contabilizar os
dias perpétuos. Mas olho - o com simpatia. Porque é ele que orienta os meus
passos perdidos, neste meu tímido caminhar pelos labirintos da vida.
Q.P.
Que delícia de escrita !
ResponderEliminarInfalível na descrição das personagens o Quito não pára de nos impressionar.
Este belíssimo texto traz-me também à memória os meus primeiros anos ao serviço dos CTT, nas décadas de 50/60.Sepois de um estágio/aprendizagem de 3 meses, só quando trabalhavamos/ganhávamos quando era preciso fazer substituiões de funcionários efectivos.Assim percorri dezenas de localidades na Zona Centro, com especial relevo para Albergaria dos Doze ou Vermoil Gare para onde o transporte de fazia de combóio.
ResponderEliminarEsp+ecialmente Albergaria dos Doze, localidade onde permaneci 6 meses e onde os combóios ou de longo percurso ou regionais passavam com alguma frequência.
Tinha como pitoresco que quando havia paragem por breves minutos a estalajadeira (sempre vestida de prêto), onde tomava as refeições, percorria ao lado da linha onde o combóio estava parado, apregoando: " água fresca"!, que transportava em pequenas bilhas de barro!
E já lá vão umas dezenas de anos...
Viajantes de comboios, cada qual em seus sentidos, mas sempre vendo as mulheres, idosas, tristonhas, indiferentes a quem as observava.
ResponderEliminarEntretanto os rapazes animaram-se! Ainda bem...
Lindo texto, Quito.
Excelente, é só o que me ocorre dizer!..
ResponderEliminarEste seria mais um dos teus muitos textos que o Jornal do Fundão teria muito gosto em publicar...
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