sexta-feira, 10 de maio de 2019

APONTAMENTOS DE VIAGEM ...






A estação dos comboios é singela. Lá dentro, lá dentro da estação, há um balcão envidraçado. E, atrás do balcão, um homem de cabelo grisalho e camisa azul, que se cinge ao seu porte atarracado, olha o viajante suspeito. O viajante sou eu. Mira-me na desconfiança se irei ficar ou partir, mas a pequena mala que levo na mão denuncia-me. Distraidamente, vou olhando para a banca dos jornais. Leio os cabeçalhos, na esperança de encontrar um motivo de interesse que me preencha as cerca de três horas de viagem. Da senhora que vende todo o tipo de verdades, mentiras e utopias, apenas vejo a cabeça que emerge por entre uma montanha de revistas de capas apelativas e cautelas de lotaria presas por uma mola, a tentar vender a sorte ou a ilusão. Sentada numa cadeira de madeira, a idosa ignora-me. Sabe, pela experiência de muitos anos, que a sua pequena banca é apenas uma montra para aqueles que, de bagagem na mão cruzando destinos, lançam um olhar vagabundo pelas letras gordas dos matutinos, de cabeça pendente sobre o ombro para não perderem pitada da glória dos ases da bola ou de um qualquer artista em dificuldades que vendeu retalhos da sua vida a um manipulador de palavras cinzentas e de sonhos desfeitos. Ela, a senhora que vende jornais, continua sentada. Vai fazendo a sua malha, com duas agulhas que esgrime com destreza, enquanto vai puxando o fio de lã amarelo que tem preso por um alfinete vistoso à gola da blusa florida que veste com aroma a primavera. Não a desiludo. Compro um jornal, enquanto vou dando uma vista de olhos pela lotaria. Aposto na terminação cinco por cinco euros. É o preço da minha ilusão. Depois dirijo-me ao postigo da venda de bilhetes. Um vidro separa-me do funcionário que, com uma voz que parece vinda do além, me pergunta o destino. Peço uma passagem para a capital, que me é servida numa placa giratória em alumínio. Dinheiro para lá, bilhete para cá, para precaver qualquer eventual assalto. Uma sociedade barricada nos seus próprios medos e angústias como antigamente, quando se ostracizava os doentes com lepra. Lá fora, o cais de embarque está vazio. Apenas vejo uma mulher pequenina, vestida de negro, sentada num banco de ripas. Veste por fora o que a forra por dentro – o luto da alma. Vagueio pela plataforma, aguardando o comboio. Fixo as linhas paralelas e um emaranhado de carris que se cruzam sem se perceber o destino. Olho para norte e a linha parece diluir-se no infinito. Olho para sul e a linha é engolida já ali, no meio do casario da cidade. Apenas o enorme depósito da água, pintado de branco, parece ser a sentinela fiel dos dias que correm ao sabor de um Tempo que amarra o viajante ao ferrete dos ponteiros do relógio cruel, que lhe conta impiedosamente as horas, os minutos e os segundos do palco efémero da Vida. Na bruma da manhã acolhedora, olho o dorso do comboio que se avoluma à medida que se aproxima da estação. Vem sinistro, no seu rodado metálico, apitando na procura de qualquer transeunte distraído. O altifalante da gare vai anunciando a sua chegada na sua voz roufenha. Depois a composição imobiliza-se e, em curto espaço de tempo, o silvo agudo da partida. Sento-me só, num compartimento confortável mas sombrio. Castelo Branco ficou agora para trás e já só vislumbro a plácida melancolia dos olivais. Lá mais à frente, irei encontrar as Portas do Rodão e até o Castelo de Almourol me saudará, sitiado pelas águas mansas do Tejo. Lá longe, na capital, acordarei da minha letargia, com o estrondo da grande cidade. Da gente que se cruza comigo de semblante fechado, gladiadores de um tempo que lhes foge na arena diária do nascer e do renascer. Mas voltarei. O comboio que me levou ao encontro da urbe dos mil encantos e desencantos, rumará de novo à Beira - Baixa. E ali, ao anoitecer, o relógio da Estação de Castelo Branco, com os seus ponteiros negros, lá estará à minha espera, indiferente à minha saga de romeiro do Tempo. Porque ele – o Relógio – apenas tem o compromisso de contabilizar os dias perpétuos. Mas olho - o com simpatia. Porque é ele que orienta os meus passos perdidos, neste meu tímido caminhar pelos labirintos da vida.
Q.P.     

5 comentários:

  1. Que delícia de escrita !
    Infalível na descrição das personagens o Quito não pára de nos impressionar.

    ResponderEliminar
  2. Este belíssimo texto traz-me também à memória os meus primeiros anos ao serviço dos CTT, nas décadas de 50/60.Sepois de um estágio/aprendizagem de 3 meses, só quando trabalhavamos/ganhávamos quando era preciso fazer substituiões de funcionários efectivos.Assim percorri dezenas de localidades na Zona Centro, com especial relevo para Albergaria dos Doze ou Vermoil Gare para onde o transporte de fazia de combóio.
    Esp+ecialmente Albergaria dos Doze, localidade onde permaneci 6 meses e onde os combóios ou de longo percurso ou regionais passavam com alguma frequência.
    Tinha como pitoresco que quando havia paragem por breves minutos a estalajadeira (sempre vestida de prêto), onde tomava as refeições, percorria ao lado da linha onde o combóio estava parado, apregoando: " água fresca"!, que transportava em pequenas bilhas de barro!
    E já lá vão umas dezenas de anos...

    ResponderEliminar
  3. Viajantes de comboios, cada qual em seus sentidos, mas sempre vendo as mulheres, idosas, tristonhas, indiferentes a quem as observava.
    Entretanto os rapazes animaram-se! Ainda bem...
    Lindo texto, Quito.

    ResponderEliminar
  4. Este seria mais um dos teus muitos textos que o Jornal do Fundão teria muito gosto em publicar...

    ResponderEliminar