Foi num entardecer de Agosto. No cais de Lagos, tendo a cidade
como pano de fundo e o branco imaculado do singelo casario, procurávamos por
entre um emaranhado de mastros a traineira de Mestre Florival. Nós, os quatro
amigos, eramos passageiros improváveis de uma noite de faina no Atlântico. E
ali, encostado ao paredão, lá estava o homem de muito mar com o seu boné
marinheiro e as rugas fundas no rosto tisnado como atestado de uma vida
difícil. O pequeno barco era modesto, se o compararmos com outras
embarcações de pesca de maior calado com uma tripulação alargada de pescadores.
Porém, Mestre Florival trabalhava sozinho. Apesar da idade já avançada, metia
proa à maré, tragado pela noite e por um mar largo e infinito. Então partimos.
O toc –toc ritmado do motor da traineira estilhaçava um universo de silêncios.
Na frente, uma espuma alva roçava o casco da embarcação que progredia num mar
sereno. Mais de uma hora de viagem. O Mestre, na sua faina de preparar as artes
para lançar ao oceano não falava, absorvido nas tarefas. Nós, na ré da
embarcação, olhávamos o horizonte, até que o manto escuro da noite abraçou o
mar e a traineira. Apenas o marulhar cavo das ondas. Apenas as estrelas
cintilantes no céu. Havia muito de espiritualidade naquele momento de trégua
com as preocupações dos dias cinzentos. Eramos cinco almas longe de terra e
rodeados por um mar amistoso. Ao balançar suave do barco, Mestre Florival veio
sentar-se junto de nós, agora que a rede do pescado tinha sido lançada na
lotaria do oceano. Lotaria porque muitas vezes a pesca era gorda, mas também
havia noites de solidão em que a rede vinha quase vazia nesta roleta do mar. Sentado
num embaraçado de cordas, o Mestre pegou na lancheira que abriu. De lá tirou um
pão encorpado, uma lata de atum e uma pequena garrafa com vinho. Também um
pedaço de queijo e umas pataniscas de bacalhau. Afinal, o petisco que a sua
companheira tinha cozinhado com amor para aquela aventura do mar que lhes dava
o sustento. Comeu religiosamente e em silêncio, manejando em movimentos lentos
o canivete com que tirava a casca ao pedaço de queijo. Uma brisa fresca
apareceu de mansinho a lamber-nos o rosto e lutávamos contra uma vontade forte
de dormir. O corpo, nada habituado às andanças da faina, reclamava repouso.
Rendidos e de cabeça pendente no ombro adormecemos. Menos o Mestre Florival,
sempre vigilante das suas artes e cúmplice de um pacto com noite e a solidão. Então,
puxada a rede com um guincho o mar foi generoso. Ficámos felizes por ele.
Afinal, aquele herói anónimo que desafiava o Destino, presenteara –nos com uma
experiência diferente. Recebeu-nos na sua pequena traineira e partimos ao que
para nós era uma aventura. Ao amanhecer, regressámos e era grande a azáfama no
cais, com as camionetas a levar para lota e a praça do peixe o pescado que será
vendido a preço exorbitante. Para o pescador que enfrenta o mar e a solidão na
sua pequena traineira, ficará apenas uma pequena migalha do seu suor. Mas
Florival já está conformado. Disse-nos adeus e partiu de lancheira na mão e uma
samarra ao ombro para se defender das brisas da noite no Atlântico. Em casa, de
novo encontrará o sorriso e o aconchego dos braços do seu amor. E o mar sereno, que todas as
noites o aguarda para o recomeço da faina , vai ter que esperar.
QP
Lagos é sempre motivo para desenvolver mais um excelente texto. Desta vez para uma aventura numa traineira que se faz ao mar para que os seus homens ganhem o sustento da familia.Para eles mais uma rotina... Mas para 4 amigos curiosos uma aventura, que em dia de mar chão terá sido um passeio agradável, para mais com um Mestre competente!
ResponderEliminarTive uma experiência semelhante há um bom par de anos em Sesimbra quando fui numa pequena embarcação de pesca do velho mestre Custódio numa noite de mar chão.
ResponderEliminarSem sondas electrónicas ou radar guiada apenas pelos anos de experiência do Mestre que já perto da linha de horizonte tentava localizar o pesqueiro rumando mais para a esquerda ou mais para a direita olhando os pontos de referência na costa que ali sabia que triangulando-os com o barco determinariam o ponto onde finalmente largou ferro.
Lançadas as redes ali ficaríamos horas para depois seriam levantadas.
O baloiçar do barco, o marulhar da água no casco e o enjoo a que não consegui resistir foram uma experiência inolvidável.
Nunca esqueci o aviso de mestre Custódio quando nos explicou que o mãe chão daquela noite podia inesperadamente converter-se em mar cão sem aviso.
Por isso dizia ele que deviamos respeitar o mar mesmo quando nos parecesse que tudo estava calmo.
Regressados de madrugada a Sesimbra com o pescado ali foi descarregado na lota.
Leiloado a preços que me pareceram baixos comparados com a exorbitância que atingiram no mercado ou no restaurante, aprendi que mal compensavam o risco e o esforço daquele homem.
Obrigado pela tua inconfundível escrita amigo Quito.
Obrigado Rui pela partilha de uma experiência semelhante à minha. Palavras sábias de Mestre Custódio sobre o mar - chão que também pode ser mar -cão na procura do mar - pão.
EliminarUm abraço
Errata
ResponderEliminarMãe chão = mar chão
Pedaços de vidas muito duras e arriscadas, que tão mal são recompensadas.
ResponderEliminarTestemunhos contados na primeira pessoa, realistas e poéticos!
Dois mestres da escrita, Quito e Rui!