domingo, 18 de julho de 2010

VENTOS DO SUL

Sexta – feira de uma tarde quente de Julho. Como num exercício militar, caminho pela auto-estrada do Sul em direcção ao Algarve, numa fila de automóveis que, em ritmo compassado, parece obedecer a um plano previamente traçado. Poucas ultrapassagens, apesar do ritmo ser vivo e a exigir cuidados redobrados. E assim vamos, Alentejo abaixo. Em Grândola, uma paragem obrigatória no restaurante de uma Estação de Serviço. Apenas tenho vontade de me refrescar De garrafa na mão, sento-me a um canto, e vou observando aquela montra humana que me está reservada deste nosso Portugal português. Nas mesas, famílias numerosas vão-se banqueteando, por entre gargalhadas, algumas discussões, muito cansaço e crianças esgotadas num choro quase impertinente, a quem a mãe vai dizendo de palma da mão em riste “ é a última vez que te aviso...”. Depois, os outros. Os casais de namorados, que, de mão dada, aguardam pacientemente a vez de serem atendidos. E os que se vão entretendo a decifrar as primeiras páginas dos jornais, de cabeça torcida, de acordo com a confusão reinante no escaparate das revistas, manuseadas por milhares de mãos e de novo para ali atiradas sem critério. No meio de tudo isto, dezenas de motoqueiros. O destino é conhecido: Faro. Passeiam-se pelo restaurante de uma forma errante, de casaco e calças de cabedal, lenços na cabeça e óculos escuros. Pendurado no braço, como se fosse um cesto, o capacete. Depois o regresso à estrada. Ordeiramente, lá vamos. A faixa da esquerda livre para os entusiastas das motas. Passam por nós curvados para a frente, faróis acesos, alguns a velocidades a rondar os duzentos quilómetros hora, como se de balas humanas se tratassem. Cerca de duas horas mais tarde, chego à minha cidade de adopção: Lagos. É todo um encantamento. O mar azul, as casas brancas, a cidade em franco progresso. Que linda está a minha cidade!. Mas nem tudo são rosas. Pela primeira vez, vou encontrar-me com os meus amigos, depois da morte do Castro. Temos uma cadeira vazia. Definitivamente. Recordo-o: alto e esguio, ligeiramente curvado para a frente como se trouxesse o universo às cavalitas. O cigarro companheiro e um humor fino. Dizia uma graça e os outros dobravam-se a rir. E ele, do alto do seu cigarro, ficava impávido e sereno, como se tivesse dito a coisa mais séria do mundo. E quando eu voltar ao nosso café, “O Mimo”, já antevejo o Zé Manel – o tal que mata tudo e empurra o mundo com a ponta de uma baioneta – a abraçar-me em silêncio com uma lágrima ao canto do olho. E A Célia, a viúva – querida amiga de tantos anos – a dar-me um abraço apertado, tal como no dia do funeral. Um abraço que vale a amizade de uma vida. Uma âncora a que ela quer, desesperadamente, agarrar-se. Sei que vai ser assim. E eu vou estar ali, incapaz de lhe dizer seja o que for, e a relembrar aquela menina da Rua do Adro, a quem me liga uma profunda amizade. Para trás, ficam as idas à Praia no Pinhão. As sardinhadas em casa do Marreiros pescador. Os passeios em grupo pela cidade. E o dia em que, pela primeira vez, apertei a mão ao Castro. Logo gostei dele, porque vi como eram felizes. Mas a morte, sinistra, meteu-se de permeio. Uma injustiça. Como se houvesse justiça na morte. E, afinal, que dizer perante esta hecatombe ?. Nada. Resta o silêncio. Agora, que a noite tombou sobre a cidade, da varanda da minha casa, já só oiço a voz do mar. Ao longe, esbatidas no horizonte, diviso as luzes das traineiras na sua faina. E é assim, embrulhado na escuridão da noite e nesta amálgama de sentimentos que me invade, que vou observando o despertar dos ventos, que há séculos habitam esta zona de um Portugal marinheiro. E que, vindos do mar, me vão afagando o rosto. São os ventos da minha nostalgia. São os ventos do Sul.
Quito Pereira

9 comentários:

  1. Não tem piada nenhuma... eu ia para lêr mas comecei a ver tudo... Que excelente descrição. Enfim, simplesmente Quito. Por outro lado, vendo as entrelinhas," numa fila de automóveis que, em ritmo compassado", coisa que aqui não acontece por estes lados mesmo com o mau estado do piso das auto-estradas, diz-me que em Portugal ainda não se vive a recessão que nestes lados dizem ter acabado. Começaram ontem as férias da construção aonde milhares de pessoas muito bem pagas, ordenados que rondam os dos mestrados e que no passado, já na sexta-feira depois de almoço, muitos estariam a partir para os EU a fim de evitar a bicha de sábado de manhã. Os outros, era hábito chegarem às próximidades da fronteira pelas quatro ou cinco horas da manhã de sábado e só a passarem lá para a tarde do mesmo dia, tal era a bicha. Ontem a passagem era free. Sel-service. Chegar e passar. Fiquei contente que Portugal não sinta as dificuldades de que aqui se fala. Quanto ao artigo, que previlégio tê-lo lido. Boas férias.


    Chico

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  2. Como diz o Chico é um privilégio ler o
    que escreves.
    Que as férias algarvias sejam boas apesar
    da ausência do teu amigo Castro...mas ele gostaria que a assim fosse!
    Uma viagem descrita como bom observador
    e as emoções soltas à Quito,amigo.
    Beijinho para a São e para ti.

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  3. Podia dividir-se em duas metades este texto do Quito.
    A primeira, a do repórter, incógnito e observador na sua viagem para o Sul, atento aos pormenores que escapam ao olhar comum.
    A segunda a do homem sensível que vê as coisas que nós sentimos muitas vezes sem as vermos.
    As luzes das traineiras a tremeluzir no mar, encerrando a dureza da vida de quem para ali vai ganhar o sustento de cada dia, pescando o sustento dos turistas, indiferentes, as mais das vezes, ao trabalho que está por trás do peixe que saboreiam à mesa.

    Nas duas partes em que dividi o texto, o mesmo homem, o mesmo escritor...

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  4. Aos amigos agradeço as palavras de simpatia. Mas para além do agradecimento, ao meu amigo Rui Felício peço um favor: quando escreveres escritor, põe a palavra entre aspas. Sou apenas um "escritor" de afectos. E de gostar de compartilhar a amizade com os amigos, mesmo que estejam longe ...
    Abraço a todos

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  5. Quito,desculpa o atraso do comentário.Porém não foi por desinteresse mas sim por merecer um elogio detalhado.
    Li com toda a emoção habitual.
    Agora deves varrer os ventos e sentir apenas a brisa com o cheiro da maresia!
    Boas férias.

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  6. Gosto de ler e aprecio o que escreves!
    Agora transmitir por escrito o prazer que me dás lendo o que escreves já é um pouco mais dificil,pois para trás já estão comentários que não dão espaço para comentar nada de original!
    És bom a escrever o que te vai na alma!
    Prontos!
    Agora bronzeia-te mas não te queimes,pois no Salgueiral depois podem não te reconhecer...

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  7. Oh Rafael, queimado já ele está desde ontem.
    Ele não contou mas eu sei. Tenho as minhas fontes...
    Quando o Quito viu a italiana na mesa ao lado, a fustigá-lo com aqueles faróis de Ferrari e a cruzar as jantes 17 deixando antever o motor do de alta cilindrada, levou a colher de sopa a ferver à boca e... queimou-se.........

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  8. Fico sempre deslumbrada com o que escreves.Continuaa deliciar-nos com a Tua maravilhosa escrita.Boas férias para Ti e para a São.Beijinhos

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  9. Quito belo texto, que nos faz acompanhar-te a par e passo na tua viagem a caminho dos ventos do sul... dos ventos da tua nostalgia.

    Boas férias e que não ganhes nenhum torcicolo a querer observar todas as belezas …naturais.
    Abílio

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