Navio Niassa ...
Diz a sabedoria popular que “quem
conta um conto acrescenta-lhe um ponto”. Também esta verdade assume relevância
nos recontros da guerra em África. Se muitos são relatos verídicos e
emocionados, outros são fantasiosos e fruto da imaginação de cada um. De uma
pequena escaramuça se faz uma batalha sangrenta, com explosões e baixas à
mistura. Vem isto a propósito de uma informal conversa num café de Lagos,
cidade apinhada de gente maioritariamente estrangeira, numa babilónia de
línguas e culturas que se passeiam pelas artérias e vielas da cidade, numa
organização desorganizada, neste mês de Maio acolhedor em terra algarvia. Sentado
numa mesa do “Mimo”, esse mimo de café na Rua Infante de Sagres, vou olhando a
rua. Na mesa ao lado, estão dois homens que conheço de vista e que pelo sotaque
se percebe serem algarvios. E o Zé Manel, dono do estabelecimento que, entre duas “bicas” que vai servindo, se senta
junto a mim. Fala-me de Lagos, deste ou daquele pormenor, como do grupo de
teatro amador de que faz parte, ou da ditadura da Câmara de Lagos, que lhe
indeferiu um requerimento para colocar mais quatro mesas na explanada do seu
pequeno café. Subitamente, a conversa descambou para a guerra de África.
Falando para mim e para os dois outros clientes, disse com convicção:
- Antes de chegar à Guiné, podia
ter morrido em Lisboa a bordo do navio “ Niassa”, quando explodiu uma bomba no porão.
Depois, em jeito de narrativa,
prosseguiu:
- Faltavam cerca de dez minutos
para o barco largar, com os familiares no cais a dizer adeus com lenços
brancos. Tinham já retirado uma escada de acesso a bordo e apenas faltava
retirar uma outra escada. Então, ouviu-se uma grande explosão e o barco tremeu.
Foi um atropelo, com os militares a gritar, numa correria para abandonar o paquete.
Depois, veio a saber-se que tinha sido uma bomba colocada no porão, que abalou
a estrutura do navio, mesmo junto à linha de água. Mais tarde, quando desci
junto do meu beliche, fiquei pálido. No local do rebentamento, a minha bagagem
estava desfeita, tal como a de alguns camaradas meus. Cá fora, os familiares
não arredavam pé aos gritos de “ assassinos, assassinos, querem matar os nossos
filhos”. A noite caiu e do cais ninguém arredava pé. Mais tarde, talvez para as
gentes desmobilizarem, o barco foi levado para o largo, onde pessoal da Lisnave
arranjou os estragos e lá seguimos viagem escoltados por um barco de guerra da
Marinha, um dia depois do previsto. Entretanto, a Emissora Nacional, disse
formalmente que o “Niassa” tinha partido, quando ainda estávamos em Lisboa. Omitiram,
deliberadamente, os factos aos seus ouvintes.
Desconhecendo esta realidade,
fiquei a olhar o meu amigo. Os outros dois clientes, que disseram que também
tinham combatido na Guiné, ouviram tal como eu, esta narrativa com
desconfiança. Um deles até sorriu, com desdém de uma peripécia fruto de uma
imaginação fértil. Porém, para mim, a descrição tinha demasiados pormenores e
comecei a acreditar que talvez houvesse algo de verdade no relato que nos era
contado em agitação e em jeito de catarse. Então indaguei. Pesquisei e
realmente batia certo. A bomba no “Niassa”, aconteceu poucos dias antes da
revolução de Abril. Mais precisamente, no dia 9 de Abril de 1974.
Desta vez o Zé Manel, que mata e
esfola tudo e todos sem ser capaz de pisar uma formiga, disse a sua verdade de
uma verdade histórica. E, felizmente,
sobreviveu para contar mais esta memória baça que já se vai perdendo nos
tempos. E eu, que sou bastante amigo dele, tenho o deleite de o ouvir dizer-me:
- Quito, tenho ali para provarmos
uma amêndoa amarga de estalo …
A nós, a mim e a ele, sobreviventes
que fomos e somos, a guerra crua da Guiné não nos aniquilou nem a amizade nem
os sonhos.
QP
Com a coordenadora do MFA a trabalhar já nos aspetos finais do 25 de Abril, esta ação das BR revela alguma falta de coordenação. Importa também que se saiba que a PSP foi avisada da explosão 20 minutos antes dela ocorrer para que o paquete fosse evacuado.
ResponderEliminarMais um excelente texto que passando por Lagos e um pouco pela Guiné, tendo como personagem principal o Zé Manel que conta a história verídica da bomba no Niassa, antes de mais uma partida para a Guiné...
ResponderEliminarFacto( não fato...) curioso que o dia da bomba tenha sido o dia 9 de Abril, coincidência ou não também foi num dia 9 de Abril mas do ano de 1918 que rebentou a primeira guerra mundial e onde se deu a batalha de Lys, com pesadas baixas do Corpo Expedicionário Português perante as forças imperiais alemãs...
Espero que tenhas aceite a amêndoa amarga doce...
A 1ª Guerra Mundial rebentou em 1914, e terminou a 11 de Novembro de 1918 (Armistício).
EliminarO Rafaelito quis rebentar datas.
EliminarMais uma estória verdadeira do Quito que nos ilucida um facto que se viveu na altura e escrito pela sua pena que nos mantem na expectativa até ao fim, é para este leitor assíduo um maná de prazer.
ResponderEliminarFrancamente que também desconhecia essa da bomba e pelas datas se alguns iam até Moçambique, tiveram forte chance de terem apanhado o golpe de estado nos últimos dias da sua viagem.
Fiz essa viagem no Niassa que já agora me deixou uma bomba também para contar.
Temos andado aqui todos juntos com idades de nascimento diferentes mas muito próximos, que na realidade na altura alguns estavamos muito longe no tempo e não temos notado.
Assim, eu parti no Niassa, onze anos antes deste conto e portanto vivendo-se uma época muio diferente.
A minha ida nesse barco foi uma desilusão por vários motivos e dos quais me vou referir a uma, a alimentação pois o resto dava pano para mangas.
Para quem nunca conheceu a tropa, vou expôr um pouco.
Havia as classes de oficiais, sargentos e praças. As praças eram constituídas de soldados e cabos. Na Força Aérea na classe de praças havia situações diferentes: soldado e cabo do exército, soldado paraquedista que em tudo se apresentavam como sendo da FAP mas na realidade pertenciam ao quadro do exército e cabo escpecialista que era da FAP. O soldado paraquedista e o cabo especialista gozavam de certas beneces porque a patente e o salário que lhes eram atribuídos, eram inferiores à do exercito e assim digamos que era uma forma de contrabalançar a situação. Só que entrados no barco, o comando das forças embarcadas era do exercito e via-nos similar às outras praças, o que para nós não tinha mal nenhum pois até eram só uns dias, a não ser quando tocou à paparoca. Com comida não se brinca.
Uma bicha com o comprimento do barco até aos cozinheiros que estavam na proa, um prato de alumínio com colher para receber uma concha ou mais se quiséssemos cheia de feijão regada com molho. A primeira tarefa foi conseguir lavar o prato cheio de riscas e amolgadelas bem pretas. Depois, até meter na boca ainda foi indo mas engolir… Tínhamos um oficial da FAP responsável por nós e lá fomos todos para a porta do seu refeitório para falar com ele, que ficou espantado com cara de aflito quando nos viu todos juntos. Disse-nos que o melhor para falar com ele, era irmos cada um por seu lado até à ré que ele ia aparecer logo mas para não andarmos assim todos juntos porque os oficiais do exército podiam pensar outra coisa de nós.
Assim foi e ao fim de dois dias, não conseguiu resolver nada porque o comandante do exército que até se interessou pelo assunto, foi ouvir os soldados e eles diziam que nunca tinham comido tão bem.
Enfim: cada pessoa tinha em alimentação direito a vinte escudo para comer por dia. Os únicos que tinham mais, eram os cães com direito a vinte e quatro escudos.
Nós queixavamos que comíamos mal e os pobres dos soldados do exército nunca tinham comido tão bem.
Mais tarde assisti ao mesmo no quartel do exército em Mueda que comiam mal mas nós ali mesmo ao lado comíamos bem e eramos só sessenta homens, o que em teoria não daria para travessas cobertas cheias de comida sobre uma mesa encostada à parede do fundo com vários pratos e talheres, para quando se tinha fome. De noite sabia tão bem…
Não sei se mais tarde houve alterações mas no meu tempo era assim. Enfim...
Francanente: dos cães nunca soube se havia problemas pois sendo hábito haver um que toma o comando do local, nunca notei alguma revolta contra a hierarquia entre eles. O empregado tratava-os bem, dava-lhes os seus treinos diários, mantinha-lhes a higiéne, dava-lhes boas refeições pois comiam depressa e lambemdo-se com muito agrado, era uma alegria.
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