Corremos. Corremos muito. Corremos uma vida inteira. Somos
reféns de nós próprios e dos outros. Olhamos o quotidiano na esperança de
alcançar aqueles quinze dias mágicos de nos libertarmos da roupa formal, da
maldita gravata que nos estrangula o pescoço e que a empresa exige. De não termos
de esperar pacientemente pelo transporte público que não aparece e que, quando
aparece, ficarmos prensados no meio da multidão de passageiros que olha o
relógio que lhes bloqueia a suposta liberdade que pensam ter. Os tais quinze
dias mágicos são as férias. O tempo de arrumar as malas. De partir para outro
local. De dar um pontapé no ponteiro da horas e de fazer uma refeição quando e
onde apetecer. De matar, ainda que provisoriamente, a ditadura do labor forçado
e por vezes escravo. Porém, há também aqueles que gozando férias, não conseguem
fugir ao espartilho em que andaram todo o ano. Transportam para as novas terras
e novas praias do seu lazer, a correria em que vivem no dia a dia. Vestidos de
palhaço pobre, buzinam no trânsito porque vão com pressa, discutem nas filas do
supermercado e olham com vinagre o vizinho do lado que lhes roubou os cinco
metros quadrados de areal para espetar o chapéu de praia, pousar as toalhas, as
cadeiras de encosto, a lancheira, a prancha de surf, a bola de futebol, as raquetas de ping-pong e
o balde de praia do filho mais novo para fazer castelos na areia. Vivem
permanentemente irritados e quando vão ao restaurante em rancho, levam o rei na
barriga. O empregado de mesa desce ao estatuto de criado, para lhes servir de
bandeja a impertinência da sua insignificância plena. No fim do repasto de muitas
reclamações, olham milimétricamente a conta, numa concentração absoluta, como
se estivessem a fazer uma prova de matemática na Faculdade. São os reis de
Agosto. Um rei nu.
A Fortaleza da Praia da Luz é um embalo de tranquilidade.
Naquela mesa debruçada sobre a pequena praia e um mar plano e azul, olhamos ao
longe o promontório e as rochas que a natureza arrumou sem critério. Os barcos
de vela colorida sulcam o oceano em ondas de espuma. A vingança efémera de que
tomámos conta do Tempo e não do Tempo que tomou conta de nós. Não há presente
nem futuro. Apenas nós. E sós. A cataplana de peixe fumegante que desce sobre a
mesa. O aroma de uns olhos grandes e o sorriso da jovem empregada nepalesa,
plenos de cordialidade. E uma garrafa de vinho. De vinho branco transparente a
repousar num balde de gelo. Os copos que se enchem e que se tocam. O observar
do rótulo do vinho que é servido. Olhar a sua graduação e origem. Rodar lentamente
a garrafa e ler o monólogo de quem anonimamente escreveu:
“Crepúsculo em pinceladas douradas. É hora do silêncio e da
tranquilidade. Um suspiro deixa sair o dia que passou. E convida a entrar a
gosto os frutos tropicais. Tudo é fresco na boca e na alma. Olho a paisagem e
não preciso de muito para interpretá-la. Porque é expressiva, contudo simples.
Equilíbrio é o que o momento me traz"
Um momento de ouro. O diálogo entre quem saboreia aquele
néctar, e de quem escreveu uma prosa embrulhada num rótulo de poesia. Talvez o
coração nobre de um palhaço rico. Rico de inspiração. Rico de emoções. Rico de sentimentos.
Rico no seu anonimato plebeu de quem não aspira sequer a ser príncipe e jamais
o será, nesta sociedade de competição feroz, que desgraçadamente já nem
pressente o murmurar do mar, nem olha na noite de breu o cintilar das estrelas.
Q.P.
Um excelente texto onde as férias foram o mote, e a tua estadia em Lagos a banhos(secos) o tempo, o sossego em casa contrastando com o frenesim nas ruas ou as peripécias no areal ou no mar dos muitos que aproveitam as férias para se afastarem do ritmo diário de um ano de trabalho. Fazer malas, desfazer malas é o bom e o mau de quem vai para férias...
ResponderEliminarFrancamente, um texto que nos aviva a alma tanto seja sobre a vivência da vida durante uma semana, um mês, um ano ou vários, assim como por toda uma vida. Costumam certos artistas dizer que hoje em dia não é preciso fazerem quadros a óleo das pessoas para a posteridade pois uma foto bem feita por um verdadeiro profissional faz o mesmo trabalho e não falham nenhum detalhe. Pois bem, para aqueles que não viram ainda o retrato da vida de muitos reis de Agosto, "reis nus", basta ler este texto do Quito que brilha não só pela simplicidade da sua leitura, como pela sua expressividade.
ResponderEliminarBem hajas.
Na verdade, meus caros Chico e Fernando, não sou fã de praia. Mas gosto de mar. Uma cidade com mar ou um bom rio, tem uma vida que uma cidade do interior não tem. Também não gosto de multidões. A praia de Porto de Mós, em Lagos, é um caos de estacionamento, de nervos e irritação. Será isto férias ? Estar sentado na mesa de um restaurante e quatro ou cinco tipos em pé, a ver quando acabamos a refeição, para nos apanharem a mesa? Fujo a isso e já sei as minhas rotinas, para não viver este tipo de situações. Só ando por locais "familiares",onde estou o tempo que me apetecer e me conhecem há muitos anos. Tenho logo "estatuto" de mesa reservada, mesmo que a casa esteja cheia.Como diz o outro "são muitos anos a virar frangos".
ResponderEliminarUma abraço a ambos os dois ...
Ah! Então é nesses sítios que aprendes as tuas especialidades "gourmet" das quais se destaca o teu famoso "batido de atum"? Bem me parecia...
ResponderEliminarAmigo Carlos Carvalho, decididamente ficaste fã do batido de atum ! O abraço que era a ambos os dois passa agora a ambos os três ...
EliminarAh, que nunca mais molhei os beiços num batido de atum como o vosso, Quito da São e Sao do Quito!
Eliminar...e se fosse um batido de figos?
EliminarCom essa é que tu me f... figaste!
EliminarPois não! Bem fui esperando, mas alguém pôs ponto final na festança!
ResponderEliminarJá agora aviso-te que anda aí um grupo de pilhas, que aproveita a tua ausência para te gamar os figos do quintal. Eu corria-os a tiros de caçadeira. O abraço que era a ambos os três, passa agora a ambos os quatro ...
E depois ainda reclamam, os labregos! Que os figos não são pingo de mel e sim pingo de podre, que falta a porta na tampa da água e isso é bom porque serve de escada mas devia ter um corrimão, etc.
EliminarDiz à Luisa que não há cadeados ou chaves que resistam ...mesmo que seja para apanhar figos em fim de vida!!!
ResponderEliminarFim de vida? Ainda me vou empanturrar com os figos. Aquilo está carregadinho, este ano.
EliminarFim de vida? Ai é? Já lá nem vou...
EliminarAinda acreditas no Bombista, tu?!
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