finito e infinito ...
Não tenho o culto dos mortos. Não
corro nem nunca corri para aqueles espaços tétricos que são o ancoradouro da
vida. Mas eis-me aqui, neste estranho paradoxo de, numa terra distante,
ultrapassar o portão de ferro que me abre as goelas para a única certeza da
vida. Ali, naquele pequeno morro, percorro campas e olho fotografias entre
flores vivas e coloridas. Também por entre pedras tumulares de mármore de
grande aparato, ou simples montes de areia, como se os que povoam este mundo
terreno, queiram ainda fazer a patética distinção entre os herdados e os
deserdados da vida. Deambulo errante por entre carreiros estreitos e vejo caras
que me são familiares. Paro junto à última morada de um homem simples com um
nome também tão singelo quanto foi a sua vida – apenas Francisco António. Ali
fiquei, a olhar a sua fotografia por entre os cravos de uma jarra, porque hoje
é dia de finados. E recordei a sua oficina de bater sola e do calçado dos
fregueses pendurados em cavilhas espetadas na parede. E das vezes em que, por
amizade, me engraxava os sapatos e me contava inocentes anedotas. Deixei quem
tinha de deixar na intimidade de uma prece e saio daquele local. Lá fora, no
cocuruto daquele pequeno monte, tenho uma vista privilegiada sobre a aldeia.
Num dia morno, o Tempo parece que se escoou pelo fundo de um funil. Uma a uma,
contei as onze badaladas do relógio que habita o alto da torre da Junta de
Freguesia, que domina todo o povoado. Partir por ruas estreitas ladeadas de
oliveiras, com num qualquer conto Bíblico. Depois, despir o luto institucional,
como se o vazio da ausência tivesse data marcada. Sacudir aquela penumbra da
alma na mesa de um restaurante da cidade albicastrense. Com os empregados que
me conhecem há muitos anos, os sorrisos, as picardias do pontapé na bola ou a
escolha do prato a degustar. E ele, o dono, lá apareceu de boné desportivo na
cabeça, a falar-me de um tinto italiano de eleição a um preço exorbitante. Tremi
de susto, mas o italiano de Verona logo me pôs à vontade. E prometeu-me que, na
sua companhia, provarei aquele néctar dos deuses. E eu, neste dia de velório a
roçar a espiritualidade, vou acreditar que beberei daquele vinho tão especial.
Até lá, limitei-me a saborear um fino vinho branco que me fez despir a capa
escura de um dia soturno, para relançar a vontade de viver. E de derrubar a
fronteira mística e mítica entre o finito e o infinito.
Q.P.
Caro Rafael
ResponderEliminarAqui está. De acordo com o que telefónicamente me pediste e mais ou menos no horário que avançaste. Fica bem.
Um abraço
Ok e obrigado pela tua disponibilidade.
ResponderEliminarCom a tua colaboração o blog lá segue a sua caminhada.
Somos resilientes como agora está na moda ...
Reflexão profunda que coincide com aquilo que há muito penso, de cada vez que me aventuro na paz de um cemitério.
ResponderEliminarLidas as tabuletas das campas rasas ou dos jazigos ostentatorios, fica-se sempre com a sensação que só morrem as pessoas de grande inteligência, de inatacável humanismo, de grande bondade, solidárias, todas elas merecedoras do reino dos céus.
Apetece perguntar se não é melhor estar morto do que estar vivo, porque é ali sob o peso de sete palmos de terra, que finalmente são reconhecidas tantas virtudes que em vida nunca o tinham sido.
Parabéns Quito
Este é um assunto incómodo e até acredito que quem se deu ao trabalho de ler o texto, nem passou da primeira linha. Agradeço-te a colaboração, assim como a tua opinião sempre a reter pela tua reconhecida capacidade intelectual. O Doutor - Sucata ou a Sandra fazem-nos rir, mas há reflexões que por vezes partilhamos com amigos ou simples leitores, mesmo sabendo de antemão que o assunto não colhe a simpatia de ninguém e de que temos uma visão negativista da vida. São opiniões.
ResponderEliminarObrigado Rui, por colaborares. Para mim é sempre animador confirmar que leste estas e outras linhas na minha colaboração com o Rafael. Obrigado.
Tomara eu ter um pouco do Dom de escrever que tu e o Rui Felício teem, para poder exprimir-me comentando o que escrevem.
ResponderEliminarMesmo sem esse Dom não me furto a escrever o que o meu pouco engenho e arte permite...
Mais um belo texto em que recordas a tua passagem por terras de Castelo Branco.
Um dia de finados, que te trouxe à lembrança ao percorrer os carreiros estreitos do cemitério, mais uma das figuras típicas dessas terra albicastrenses de seu nome Francisco António, que teve a profissão se sapateiro.
Acrescentas outras recordações sempre marcadas pela nostalgia e que tão bem retratas na tua escrita.
Dá gosto ler e reler estes teus textos que muitos dos nossos amigos e não só o fazem com prazer.
Um abraço
Ó Quito, tu nem penses que escreves para o boneco!
ResponderEliminarAliás, no Jornal do Fundão, fazes falta...
Obrigado pelo incentivo, caro Paulo. Quanto ao JF, cá o continuo a receber em casa, pela qualidade e também reconhecimento de ter tido ali uma página durante 2 anos, que a ti devo. Ingratidão nunca fez parte do meu dicionário.
EliminarUm abraço
E ainda agradeces por me teres dado o prazer de te ler no meu jornal favorito!
EliminarAinda tens coragem por deambular pelos carreiros estreitos da última morada!... Eu nem entro! Quando lá entrar terão que me arrastar e já não sairei...
ResponderEliminarMas acabou bem! Como bom português, acabou sentado à mesa a comer e a beber um bom vinho, nem que seja italiano!...
Me desculpem os "MACHOS" ... mas nao consigo reter esta anciedade de me debrucar sobre a sua , Quito, forma narrativa que leva pra lugares surpreendentes a minha emaginacao... Continue, lhe agradecemos, a nos presentear... OBRIGADA
ResponderEliminarUm texto sombrio pelo tema que a todos toca e tocará, mas a morte faz parte da vida!
ResponderEliminarTenho muita dificuldade em entrar nos cemitérios mas acompanhei o Quito neste seu deambular e, felizmente até deu para perceber que a vida continua!