Quando Cherif Bacisko
Susso me revelou a sua música, tropecei em África. Olhei a Kora que dedilhava
como se fosse uma harpa. E, de repente, veio - me à lembrança o Baca. O Baca era
Homem Grande, quer dizer, ancião de muita sabedoria. Vivia no nosso
aquartelamento e era duplo, ou seja, trabalhava para o exército português e
para o inimigo. Levava notícias nossas e trazia informações relevantes do
antagonista para nossa segurança. E nessa ambiguidade parda vivemos, até ao dia
em que deixei aquele aquartelamento para rumar a outro destino na Guiné, mais
isolado e ainda mais perigoso. Mas não é de guerra que venho falar. Apenas da
circunstância do Baca também tocar Kora. Lembro-me dele, de gorro azul de malha
enfiado na cabeça, sentado junto à parede exterior do meu quarto, a produzir
aqueles sons africanos de mistério e uma ladainha que parecia não ter fim.
Todos estes momentos me passaram pelo pensamento e pela retina, ao ouvir e observar
o poeta e cantor de rua. Sentado naquela praça com Cherif junto a mim,
dialogámos por momentos. Falou - me do seu berço e de ser filho de pai senegalês
e mãe guineense. Veio para Portugal e em Portimão assentou arraiais de armas e
bagagens. A música e a Kora são a sua vida. Perguntou-me, com curiosidade, como
era vida no norte de Portugal. Depois falou-me da solidariedade entre os
músicos de rua e de que sendo o verão a melhor época para amealhar algum
dinheiro, praticamente trabalham todo o ano. Pelo que me deu a entender, a
fábula da cigarra e da formiga, de trabalhar no verão para ter no inverno, é
ficção para o músico de rua algarvio. Perplexo ficou quando lhe disse que tinha
estado largos momentos a ouvir a sua arte. Confessou-me que não reparou, para
depois me perguntar o que é que eu achava do som da Kora. Falei-lhe não ser a
pessoa mais indicada para emitir uma opinião, mas ele disse-me que o som ainda
não era totalmente do seu agrado. Que exigia ainda mais afinação. Percebe-se
que Bacisko Susso é amante da sua profissão. Faz gala disso. Não dedilha as
cordas apenas para que as moedas tilintem no estojo do instrumento. Ele exige de
si próprio um trabalho sério, mesmo que pouco reconhecido por veraneantes de
verão à procura de praia, de marisco e da pele bronzeada para fazer inveja ao
vizinho lá da terra ou ao colega do escritório. Mas ficou a promessa porque me
pediu, que da próxima vez eu ouvisse a Kora com atenção, para ver se eu notava
alguma melhoria nos seus acordes. Fizemos esse pacto, com a certeza do meu
analfabetismo musical. De mim, Basisko Susso apenas tem a vantagem inglória de
eu não gostar de praia, de não comer marisco, de me estar nas tintas para o
bronzeado do meu vizinho do lado e de que há muito dei um pontapé nas resmas de
papel do escritório.
Realmente teve muita sorte em te ter encontrado e tu a ele pois tu recordaste tempos longinquos de tua mocidade e ele apreciou a teu ouvido para a musica africana...
ResponderEliminarAgradeço a sua colaboração, Amélia Curado ...
EliminarQuito, o teu "analfabetismo musical" sequer se compara ao meu! Lendo-te, é que fui ao dicionário para saber o que seria..."Kora". Provavelmente, em algum documentário sobre a cultura da África, eu vira o instrumento. Mas sem o interesse de pesquisar sobre o mesmo. E, agora, tu e Cherif Bacisko me fazem aprofundar "conhecimentos" sobre esse maravilhoso instrumento musical.
ResponderEliminarBem, eu bem que gosto de praia, mas não para ficar me bronzeando, pois dá-me maior prazer caminhar quilômetros por ela...chutando a água. Gosto disso logo cedo, mas ao cair da tarde também. Além de caminhar pela praia úmida, gosto de ficar sentada... fixando o horizonte... e, nesses momentos, minha imaginação flui para lugares inimagináveis e, até, para amores que já sequer lembrava o meu coração.
Também adoro comer camarão e caranguejo, mas com limitações, pois, o que eles têm de deliciosos, também têm de remosos.
Belo conto, como sempre!
Obrigado, amiga. Não sou particularmente amante de praia, mas gosto de mar. De uma explanada ao fim da tarde, a olhar o vai-vem das ondas. Essa tranquilidade de um mar calmo, é o melhor enquadramento para momentos de reflexão sobre "cosas de la vida" no dizer de Eros Ramazotti, na sua canção. E, já agora, um Martini tinto com uma pedra de gelo.
EliminarUm abraço
Olha só....também gosto de um Martini...mas basta-me uma taça...(ou um copo)...e já está de bom tamanho.
Eliminar...uma taça, claro cheia...mas o tamanho interessa para levar o gelo!
EliminarFecha os olhos e escuta a estranha música do Lord.
ResponderEliminarSentir-te-às na tabanca onde a ouviste pela primeira vez, até ti chegarão mesmo os odores africanos, o ruído dos palmeirais ao vento, a algaraviada dos macacos saltando de ramo em ramo.
E recordarás a conversa em surdina sob o céu estrelado do Baca que te transmitia em segredo as informações que dizia ter obtido dos guerrilheiros, afiancando que em breve iriam atacar o aquartelamento.
O que ele não te dizia é que antes já lhes tinham indicado a localização dos edifícios de comando e das armas pesadas.
Era a vida de agente duplo...
Mas que importa?
O que conta agora é reter a magia daquela terra inexplicável para quem nela nunca esteve mas que nos marcou para sempre.
De um simples tocador de Kora olhado com indiferença pelo turista apressado, constrois com o teu talento e sensibilidade uma história que poucos seriam capazes de escrever.
Caro Rui, pisámos o mesmo palco africano. Que feitiço é este de lembrar um lugar onde passámos tantos tormentos ? Mas a cultura africana, não tem culpa da brutalidade dos homens. Mas nós, felizmente, sabemos fazer a destrinça entre o essencial e o acessório. E de cantar, nem que seja pela palavra escrita, essa arte das gentes africanas. Faço-o eu, como tu igualmente o tens feito, imprimindo às palavras o ritmo de África, com o condimento que só quem por lá andou, naquele contexto, entende na sua plenitude.
EliminarUm abraço
Estes teus textos sobre recordações da Guiné têm sempre um sabor especial que transparece através da maneira muito própria como nos fazes imaginar os locais e os protagonistas dos factos reais que viveste!Neste texto foste recordar Guiné através da música sentidamente interpretada na kora pelo Cherif que te levou a Banca,o interessante e desconsertante guineense ,que tanto servia os seus amigos soldados lusos como os adversários destes que lutavam pela sua independência!!!
ResponderEliminarDeve ter sido desde a Guiné que deixaste de apreciar o bronzeado...
Já andava admirado com a tua ausência e preocupado que as enguias te tivessem feito mal ...
EliminarUm abraço
Gostei muito de ouvir o som da Kora, sim eu ouvi e senti a melodia após a leitura da descrição do Quito! Continua a escutar e a ver progressão do artista.
ResponderEliminarPara o ano, se não houver novidade, Basisko estará por lá como é hábito, e possa ser tema para mais umas linhas de conversa no blogue do Fernando Rafael ...
EliminarUm abraço ...
E esse "pró ano" já não falta muito.Estamos no Natal, vem a Páscoa e já está!|
EliminarSaiu Banca em vez de BACA...acontece.
ResponderEliminarSe calhar querias dizes BACO, ahahahahah ...
EliminarFoi a "onda" do vinho...martini...e o Dom já perdera a "banca" rsss
EliminarNão ter saído Vaca foi uma sorte....
EliminarKORA
ResponderEliminarTenho muita pena de não ter conhecido o Cherif Bacisko Susso, pois tenho em casa duas Koras e não sei tocar. Já não me lembro, mas penso que uma comprei em Cabo Verde e outra no Egipto.
ResponderEliminarQuito, se me permites vou colocar a foto no final do teu texto.
Obrigado, Alfredo. Bem bonitas as tuas Koras, com o selo inequívoco de africanidade.Fico satisfeito por teres essas peças, pois pela tua sensibilidade musical, sei que preservas religiosamente estes instrumentos.
EliminarUm abraço
Ficaram lá muito bem elucidativo
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