segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O ANTÓNIO MALUCO ...



 a remendar as malhas do Destino ...
(foto net)
É ali, naquela varanda da Rua do Adro, que desfio mais um Rosário de memórias. Quanta saudade, quanta emoção, ao olhar aquela calçada estreita de pedras alvas e do casario branco e atarracado de terraços geométricos e singelos. Venham comigo. Desçamos a rua e acolá, naquela velha porta de madeira, batamos. Lá dentro, sentado num banco, está o António Maluco. Nasceu em Lagos e em Lagos mora. Do mar vive e sobrevive. Com o oceano casou, quando ficou sozinho, no dia em que a mulher partiu para a longa viagem do Eterno. Agora, é o mar e apenas o mar, a sua paixão. E o seu sustento. O cigarro pendente dos lábios, o fiel companheiro. Vergado sobre a grossa agulha, vai remendando as malhas com que voltará à faina. O António Maluco é homem de poucas falas. Tem uma voz gutural e embrulhada, que lhe sai dos lábios aos tropeções. Desde os verdes anos, que carrega aos ombros a alcunha de “maluco”. É assim que o povo lhe chama. Mas, na realidade, o seu nome é Pacheco – António Pacheco. Porém, valha a verdade, pouco se importa. Maluco é a sua coroa de glória. Relembra os dias de juventude, quando jogava a bola de trapos nos campos da Atalaia e a peleja acabava sempre em zaragata. O Pacheco tinha mau perder e o seu feitio travesso, valeu-lhe o distinto nome. Agora que a vida se aproxima do cais, tem apenas como adversário o mar. Mas é uma história de amor. Mesmo nos dias de suestada, a casca de noz com que se aventura a colher o seu sustento, está abençoada por Éolo. A brisa, por vezes forte, que substitui a bonança, sempre o empurrou para um porto de abrigo. Também a Fé, materializada numa Imagem de Nossa Senhora de Fátima, que daqui vejo em cima de um armário sombrio da acanhada cozinha. Partamos e deixemos o António Maluco a remendar as redes do seu Destino. Reparem como o seu rosto se ilumina num sorriso magoado, agora que vamos partir, Registem como tira o boné de forma educada em jeito de cortesia. Porque o António Maluco, que também se chama Pacheco, transporta nas veias a sensibilidade e os acordes de quem dedilha com os dedos macerados, a harpa dourada da sinfonia dos heróis.
Q.P.    

5 comentários:

  1. Também nós, cá vamos tocando a sinfonia de manter o blog ativo.

    Quanto ao António Maluco, já partiu há alguns anos. Que esteja em paz que bem merece ...

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  2. " Tem uma voz gutural e embrulhada que lhe sai dos lábios aos tropeções "
    A frase parece simples, mas é muito mais do que isso.
    Só por si ela define ao leitor a imagem de uma personagem que de outra forma séria difícil de compor no nosso imaginário.
    Já nos tinha sido descrito o ambiente em que vivia, o seu trabalho, a razão da sua alcunha que adoptara sem recriminação.
    Faltava-nos a sua forma de comunicar connosco que essa é a marca pessoal e intransmissível.

    São estes pormenores simples que definem a arte da escrita.
    Só ao alcance de quem aprimora dia a dia o talento inato de um escritor.

    Um abraço Quito

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    1. Amigo Rui

      Este texto, tem perto de 7 anos. Numa tarde chuvosa, fui lendo do meu arquivo, textos antigos e deparei-me com este, que tem para mim um especial sabor. Conheci o personagem. Várias vezes fui à sua humilde casa na Rua do Adro. O António Maluco, tinha um filho, o Jorge Pacheco. Era um atleta,de corpo musculado e de uma coragem a roçar a imprevidência. Saltava de uma rocha - perto de 15 metros de altura - da Praia do Pinhão para o mar, num mergulho que era um calafrio e a admiração de turistas pela bravura. Vencia tudo e eu, mais novo que ele, tinha no Jorge uma espécie de herói. Venceu tudo, menos a doença, e ainda antes dos 40 anos partiu. Li e reli o texto. Depois retoquei a prosa como o pintor que retoca a sua tela.Agora, de novo, trago o texto aos amigos. Tu apareceste e as tuas palavras de Homem que gosta também de compor as letras, são um incentivo, nesta busca de, por vezes, partilhar histórias de vida. E esta, quando a cidade de Lagos ainda vivia dentro das muralhas, é uma história de amor. De amor à minha família que ali vivia, e a nostalgia de relembrar aquele passado e da candura das gentes. Obrigado Rui, por te juntares a mim neste meu reencontro com o passado.

      Um abraço

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  3. Primeiro que tudo o blogue agradece mais esta contribuição.
    O texto, bem o texto pouco posso acrescentar depois do que o li, bem como o teu comentário e o do Rui Felício.
    Ao fim e ao cabo 3 textos em vez de 1.
    A sorte que o blogue tem.
    Não termino sem dizer que o António Maluco, como figura típica que foi de Lagos e do seu mar te proporcionu no desfiar de memórias mais esta peça literária que li com muito agrado.
    Um abraço

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  4. Ao ler o teu texto, de uma coisa tenho a certeza, o António Pacheco de maluco não tem nada e só o facto de não se importar que assim o apelidem, demonstra bem que é bem ajuizado.
    Uma bela homenagem ao António Pacheco.

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