domingo, 25 de novembro de 2018

VOO NOTURNO ...



 Levantar os punhos, como um pugilista ...
Os ponteiros do relógio, correm céleres para as seis horas da madrugada deste dia de outono. Uma madrugada fria húmida. E escura. Apenas a iluminação dos candeeiros da via pública, dão vida àquela rua do Bairro. O roncar do motor a gasóleo, um som sujo de um cantar rouco, ecoa por entre os prédios ainda inertes de vida. Cidade deserta. Caminho em direção a Ceira e não se vê vivalma. Trepo o morro e entro na autoestrada que me levará ao interior de Portugal. Percorro acompanhado, esta estrada de solidão. Sim, acompanhado pelo meu carro, amigo de tantas andanças. E pela antena dois, que oferece música que embala o meu espírito atormentado. São minutos e minutos de acordes de violino e, no fim, um locutor de voz calma e pausada, indica a próxima Obra que vai ser transmitida. Agradeço-lhe aquele momento breve em que fala comigo, mesmo que ambos estejamos sós. Ele, num acanhado estúdio da rádio. Eu, ao volante de um automóvel. Será Brahms, o meu próximo companheiro espiritual. Uma Dança Húngara, toma conta do meu pequeno espaço. Sinto-me em repouso, levado pela magia da música. Abro o vidro, e inspiro sôfrego o aroma da madrugada. Sinto-me embriagado de sensações e emoções. E, envolto nas trevas que persistem, sou engolido por mais uma curva do caminho.  Prossigo viagem. A madrugada parece ainda mais opaca. À direita, as luzes mortiças de uma Penela ainda adormecida. Lá mais à frente, minutos depois, o Avelar, agora que uma humidade densa envolve a autoestrada num manto de silêncio. O itinerário complementar oito, perfila-se já no meu subconsciente. É um percurso sinistro, que me obriga a redobrar cautelas. Subo o volume do rádio, não vá acontecer adormecer ao volante e provocar uma desgraça a mim e aos outros. Como um pugilista no ringue, levanto os punhos como quem fica em guarda, à espera de levar mais um sopapo da vida. São longos quilómetros de atenção redobrada. A ansiada manhã, nunca mais aparece. Sertã já passou na vertigem dos meus pensamentos e, ao longe, um pequeno clarão anuncia, ao de leve, a chegada do astro - rei para breve. As estrelas, semeadas pelo céu sem critério, como sementes lançadas ao vento, começam a esconder-se na claridade do dia que começa. Vou mais revigorado, agora que já vejo um horizonte rendilhado pelo perfil das árvores na penumbra. Minuto a minuto, a visibilidade melhora. E, no Firmamento, nuvens de cor ocre, como pinceladas breves na tela azul - celeste, alegram-me o espírito já menos revolto. Até o meu velho carro, partilhando desse meu estar e sentir, desliza em ritmo ligeiro ao som do Bolero de Ravel. Enquanto me aproximo do meu destino, um bando de pássaros fugidios, cruza-se no meu universo de fogo, agora que o sol apareceu no seu esplendor. O combate terminou. O som metálico do gongo, anuncia o final do combate. Baixo os punhos e desarmo a guarda. Chegou a manhã. Como o cortejo de pássaros que voam alegremente com o interregno das trevas, também eu me regozijo com o final do meu voo noturno.
Quito Pereira      

 

7 comentários:

  1. Fizeste-me recordar idênticas viagens a horas semelhantes que tive de fazer quando há uns anos tive de acompanhar uma auditoria a uma empresa do Sabugal.
    Com a agravante de, nessa altura, ainda estar em construção a auto estrada que liga Abrantes à Beira interior.
    Senti a mesma solidão, travei a mesma luta silenciosa, com a companhia da música do rádio.
    Admirando o alvorecer entre Castelo Branco e Penamacor.
    Um verdadeiro voo nocturno como tu lhe chamas.
    A diferença está em que eu não o saberia descrever da forma quase poética com que o fizeste.

    Um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Se alguém conhece aquele pedaço do interior, és tu. Na tua vida profissional e nos verdes anos, quando andaste a penar por Penamacor. Um Portugal a duas velocidades e o Jornal do Fundão como bandeira contra o esquecimento e a desertificação. Parece que nem a A 23, é trampolim para uma aproximação ao litoral.Quanto ao teu último parágrafo, a tua grande e reconhecida apetência para a escrita, não resiste a tão infundada modéstia.
      Um abraço

      Eliminar
  2. Quase poetica nao... verdadeiramente poetica... fazendo-nos sentir o esvoassar das asas musicais e a envolvencia de muitas outras sencacoes...

    ResponderEliminar
  3. Boa surpresa!Ainda bem que nada estava programado...
    Foi mesmo um voo noturno que razou a Infante Santo!Sempre é um percurso mais curto e nem precisa de passar por Penela..
    São recordações de tempos ainda não muito distantes...mas nos últimos anos da tua passagem por estas bandas tiveste um presente que te eliminou esses momentos nada recomendáveis.Quem perdeu foram as rádios amigas!
    Um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Andas na farra e eu aqui a zelar por isto. Não te esqueças que o ordenado este mês acumula com o subsídio de Natal. Paga-me e não bufes ...
      Abraço

      Eliminar
  4. Está tudo devidamente escriturado no "deves"! Sine dia

    ResponderEliminar
  5. Ai, amigo Quito, só me tranquilizei quando surgiu o azul-Celeste...Um belo momento de leitura 📖!

    ResponderEliminar