O tenente era bruto. Tão bruto
que usava os luzidios galões da patente, para aterrorizar os mancebos que, de
saca de flanela a tiracolo com a merenda, entravam pela primeira vez no Quartel
das Caldas da Rainha. E lá ia ameaçando este e aquele, lembrando os deveres da
“continência”, aquela espécie de saudação que nunca percebi bem se era um
cumprimento cordial entre cidadãos fardados, ou uma forma velada de subalternizar
alguém. Sim, porque era o ”inferior” hierárquico, que tinha que tomar a
iniciativa quando se cruzava com um dito “superior” na parada.
Porém, esta feira de vaidades e
sobranceria sobre os humildes soldados vindos por vezes de aldeias distantes,
era transversal a oficiais e sargentos. Era o caso do Neiva, que sendo um
simples furriel miliciano, pensava no zénite da sua petulância, que era de uma
casta superior aos instruendos que um dia teriam a patente dele.
Em boa verdade, é bom ressalvar
que a esmagadora maioria dos instrutores tinham a noção das realidades, apenas
exercendo uma autoridade controlada, sempre indispensável em forças militares,
para não se cair numa anarquia generalizada. Tanto mais que com armas de fogo,
há um conjunto de regras a cumprir para segurança de todos.
Mas o Neiva era vaidoso,
prepotente e maldoso. Escudava-se atrás da farda para humilhar os outros. Porém,
no fundo, era um tigre de papel. No dia que um instruendo o reconheceu do Porto
e lhe tirou a pinta de malandro da Ribeira, atirou-lhe à meia – volta em
sotaque tripeiro engalanado:
- Se um dia te apanho no Porto
parto-te o focinho …
O Neiva, que tinha tanto de
vaidade como de covardia, nem reagiu …
Naquela noite, antes de recolher
à caserna, a Companhia estava formada na escadaria que dava acesso às
camaratas. Uma espécie de anfiteatro escadas acima em várias filas. Um foco de
luz iluminava o Neiva que, de frente para nós, via apenas o grupo na penumbra.
Então, com o seu reconhecido mau caráter, foi dizendo de riso sarcástico:
- Eu não sou cínico nem sádico, mas
estão a sair as vossas “especialidades” …
“Especialidades” era aquela
espécie de roleta russa em que, enquanto iam para amanuenses, outros seriam
atiradores em teatro de guerra, jogando a vida em tempos de África. Assim, o
Neiva lembrava com o seu gozo canalha, a desdita dos que – e eram quase todos –
podiam partir para uma viagem sem retorno.
Se o silêncio já era grande nas fileiras,
tornou-se ensurdecedor. Foi então que, da penumbra, saiu uma voz firme e troante:
- Cala-te filho da puta …
O Neiva, ao ver a mãe insultada, empertigou-se.
Mas, na penumbra, não percebeu de onde tinha vindo o insulto. E jurou que só
regressávamos à caserna quando alguém acusasse o camarada de armas.
Bem pôde esperar sentado. Quase uma
hora em pé e ninguém acusava ninguém. Solidários uns com os outros, naquele caldo
de sofrimento. Até que ele se cansou, rosnou uma ameaça de que ia participar
superiormente, o que não sei se chegou a acontecer.
Voltámos às camaratas e selámos
entre todos um aperto de mão. Antes quebrar que torcer, foi lema daquela noite escura
de falta de solidariedade para connosco daquele biltre.
Dentro de dias, no frio do norte
transmontano e ao crepitar da lareira, celebrando um passado de amizade em que
as fronteiras hierárquicas militares sempre se esbateram, um pequeno grupo de
nós, como sempre acontece, vai dar um abraço caloroso tendo como pano de fundo o
Monte Farinha e a Senhora da Graça. Afinal uma empatia que se criou e ganhou
raízes no Tempo.
Para mim, na reflexão que por vezes
vou fazendo do evento, esta realidade de uma tão sólida base de afetos entre
alguns antigos combatentes que dura há quarenta e cinco anos, só se perpétua
porque o cidadão sempre esteve acima do militar. Porém, não invalida que,
voluntariamente, assumamos pela patente mais alta do exército que nos acompanha
agora e em tempos de África, uma deferência que ele até gostaria de recusar na sua
cepa transmontana da genuína amizade. Mas
foi o lema do antes quebrar que torcer, a chave de uma duradoura união entre um
grupo restrito de amigos fardados em tempo de apuros.
Transformar o cheiro pestilento
da guerra num aroma de desinteressada fraternidade, foi sempre o guião que nos
acompanhou. Um toque de alquimia em tempos pardos. A bandeira que foi o segredo
do sucesso.
Agora já não se brada às armas.
Apenas se tilintam copos de vinho à transparência das lâmpadas mortiças da Casa
Senhorial. E, com sorte, até pode ser que a alva neve se queira associar a nós
e nos bata à porta.
Quito Pereira
Um texto "ao teu jeito" que não sendo de guerra própriamente dita, remonta a esss tempos que já lá vão, mas que trazem sempre à memória momentos passados na vida militar!
ResponderEliminarTalvez já seja o proníncio de mais uma confraternização de "antigos" combatentes ...digo eu!Aqui é o sítio para o brado às armas ser substituido pelo tilintar dos copos de vinho e do espetar o garfo num saboroso naco de carne, digo eu!
Também passei em Vendas Novas um episódio semelhante! Numa ronda da noite à caserna a meu lado alguém enviou um piropo ao capitão! "Têm 10 minutos" para se apresentar o autor...ou que seja denunciado!
Como nada resultou o fim de semana foi cortado a todos!
E não é que o Capitão ficou com a impressão que fui eu????
Passou-me um valente sermão...mas como não tinha a certeza, "vão pagar todos"!!!
Disse!
Pois, este pequeno grupo nada tem a ver com os almoços anuais que muitas Companhias ainda fazem. Agora é a gastronomia e as passeatas o mote. Já me chegou aos ouvidos que em vez de bradar armas se vai bradar a um cozido à portuguesa transmontano para inicio de hostelidades. Pelo sim pelo não, já vou tomando as minhas precauções medicamentosas e desintoxicantes do "figueiredo" porque a batalha vai ser dura ...
EliminarÉ evidente que todos os que fizeram o serviço militar no tempo do fascismo, têm muitas histórias para contar, mas infelizmente nem todos têm a mestria para as escrever, como o faz o Quito. "Tenentes Neivas" eram aos montes!
ResponderEliminarSem dúvida, Alfredo !
EliminarOs jovens dão-nos exemplo de espírito de união e sabem bem ser solidários!
ResponderEliminarMal vai, se assim não forem...
Lembro-me de na turma do meu filho um aluno ter enfiado fósforos na fechadura da sala de aula impedindo a professora de dar determinada aula.
Quem foi?
Ninguém denunciou ninguém e a suspensão foi geral, até para o meu filho que estava então no hospital a engessar uma perna!
Infelizmente iam aparecendo uns Neivas um pouco por todo o lado, Quito.
ResponderEliminarA minha tropa era mais liberal mas a um dado momento, houve um sargento que deu dois estalos num recruta. Como o pessoal não estava habituado, ficou encostado à parede até o comandante da base que estava no bar de oficiais viesse resolver o assunto.
Mandou o pessoal para as camaratas e no dia seguinte falou connosco.
Cada um sabe o que passou consigo e tenho ouvido muita coisinha mas no fim destes anos todos há um problema que me faz reflectir profundamente. O Canada esteve empenhado duranto bastante tempo no Afeganistão com milhares de militares, tendo perdido cento e cinquenta e sete. Só que dentro dos que voltaram, já cá, suicidaram-se até há uns tempos cento e sessenta e sete. Mais do que os mortos em combate. Isto faz-me pensar muito sobre os nossos que voltaram.
Num cenário de pré-guerra, Quito conta-nos uma belíssima estória de paz.
ResponderEliminarLembro-me bem do período da ansiedade para conhecer a "especialidade" e, depois disso, a qualificação no curso que definia como que uma fila indiana de embarque para África.
Só que a fila funcionava como se andasse de marcha-atrás, isto é, os primeiros a embarcar eram os últimos classificados. Garanto-vos que foi a altura da minha vida em que estudei bastante...
Quanto ao Neiva, claro que também tive os "meus Neivas"... Gente medíocre que escudava a sua cobardia na divisa que tinha a mais no ombro.
Mas os "Neivas" eram, sem o querer, muito úteis. Cimentavam a solidariedade entre as vitimas da sua prepotência.