Um passado que não se apagará ...
Vivemos hoje momentos de grande
tensão na sociedade portuguesa. Um mau – estar que se sente nos mais
variados setores da sociedade. Assim é também no desporto de alta competição.
A nível interno, como facilmente
se depreende, entre os clubes ditos ”grandes”, já se percebeu que a palavra “
adversário” é apenas protocolar e que agora são declaradamente inimigos, com
acusações mútuas, em que no centro da questão estão os árbitros e os alegados
aliciamentos com prendas que vão desde ofertas que me abstenho aqui de comentar,
até pacotes de jantaradas orçando as centenas de euros. Entende-se a crispação.
São milhões de euros envolvidos, os patrocinadores a querer o retorno do
dinheiro investido e as dividas contraídas pelos clubes junto de entidades
bancárias, em investimentos por vezes suicidários e até obscenos. Ou quase.
Depois, daí ao” vale tudo” para
se conseguir resultados desportivos que potenciem o encaixe financeiro, é um
simples passo. Ganhar a qualquer preço e sem regras é o mote. Sob uma aparente
capa de honestidade e vitimização.
Porém, esta prática de obsequiar árbitros pelo clube anfitrião, sempre foi uma conduta normal, até em clubes considerados mais modestos, mas que não pedem meças a ninguém em grandeza e dignidade. Alguns são até bandeira das regiões em que estão inseridos.
E é aqui que me merece uma
saudação ao Sporting Clube da Covilhã. Clube serrano do Rita, do Manteigueiro,
do Cabrita e do Simony de outras realidades. Também dos que, nos bastidores,
trabalhavam e trabalham sem os aplausos de ninguém.
José Gil Barreiros foi um desses
dedicados cidadãos anónimos, neste caso ao clube da sua cidade. Trabalhou quase
meio século em prol dos” Leões da Serra” como massagista, fazendo-o
gratuitamente e até em prejuízo da sua própria vida familiar. Foi radiologista
de profissão e enfermeiro. Aprendeu as técnicas de massagem com Manuel Marques,
uma figura dos “Leões” de Lisboa. Hoje, do alto dos seus noventa e cinco anos
de idade, é um armazém de memórias.
A entrevista dada ao “Jornal do
Fundão”, é toda ela um hino ao desporto de outras eras. Quando se jogava com
“amor à camisola” e se viajava de táxi para norte e sul de Portugal. Quando o
doping para as tardes geladas era um cálice de vinho do Porto dado aos atletas.
O pormenor interessante quando fala numa tarde no Estádio Santos Pinto na
encosta da serra, em que o frio era tanto, “que uma vez a Académica não acabou
com todos os jogadores”.
Regressamos agora ao cerne da
questão: as prendas aos árbitros. Diz Gil Barreiros que era prática o clube
receber e brindar os árbitros com uma peça de fazenda para um fato mas isso não
significava que tivessem de fazer favores. As palavras simples de um homem
simples.
Já agora, recordo a quem lê, que
estamos a falar dos anos cinquenta do século passado. Uma fazenda para um fato,
era a imagem de marca da Manchester portuguesa, cidade fabril com as suas
gentes laboriosas, as fábricas das grandes chaminés a fumegar e os apitos
estridentes de início e fim de laboração. Cidade viva que foi berço de gente
ilustre e do povo que tinha no seu Sporting da Covilhã, o embaixador da Serra
da Estrela. Covilhã “cidade – neve”, no cantar de Amália.
Acredito piamente neste honrado
covilhanense que, ao longo de uma extensa entrevista de grande seriedade e até
candura, tanto tem para contar num desfiar de memórias. Como também acredito
piamente no atoleiro de lama que é hoje o desporto profissional, seja no
futebol ou em qualquer outra modalidade que implique retorno do capital
investido por marcas e empresas. Um lixo de que se não sabe da missa a metade.
Por muito que, para muitos,
aparentemente, haja apenas uma questão temporal entre o ontem e os dias de
hoje, é minha forte convicção que há um abismo de lhaneza de caráter, de
candura de costumes e de genuína cortesia a páginas passadas. Da cortesia franca e
hospitaleira dos beirões do interior do país, que nada tinha a ver com a
religião dos cifrões e dos obscuros interesses, embora em casos pontuais, possa
ter acontecido. Outra época. Outras gentes.
A “confissão” de Gil Barreiros,
mais não é que os fios de lã genuína que cada fábrica da Covilhã teceu. Um
cristal de palavras sinceras de quem me merece todo o respeito e simpatia, no
meio de tanta máscara carnavalesca, tanto embuste, tanto palavreado arrogante, sectário
e arrivista.
Globalmente, o público que acorre
aos estádios é cada vez em menor número. São as estatísticas que o dizem. Vários
fatores o determinam, como os jogos televisionados. Mas o clima de suspeição e
adulteração da verdade desportiva, é hoje também motivo do divórcio e
desinteresse de uma parte da sociedade que acompanha o fenómeno desportivo.
Em José Gil Monteiro, a sabedoria
de quem passou na sua Covilhã muitos Verões e Invernos. Fosse de uma forma
simplesmente temporal ou na alegoria das alegrias e das tristezas da vida. Da
Covilhã ferida de morte na sua identidade de cidade fabril, jamais perderá esse
estatuto enquanto houver quem relembre a sua história de antanho. Mesmo que um
pretérito de labor passe por um simples corte de fazenda oferecida a um
forasteiro, como prova de bem receber e de uma montanha intacta na sua grandeza
intemporal.
Gil Barreiros, homem simples e do
povo, bem poderá ser porta – bandeira desse amor beirão.
O Sporting Clube da Covilhã, com
as suas camisolas verdes de esperança, bem pode encarnar o futuro. O futuro que
também passa por cidade universitária que já é. São os ventos da História. Mas
de uma História que nunca apagará nem renegará o seu glorioso passado.
Quito Pereira