segunda-feira, 1 de outubro de 2018

ATRACÇÃO NA CIDADE- reposição de conto do Rui Felício de 2011

 anos que sou cliente daquela loja de pronto a vestir para homem, na Av. do Uruguai.
Não é que seja barata, mas os fatos são de boa qualidade, a confecção é perfeita e consigo sem dificuldade encontrar o tamanho adequado sem necessidade de serem feitos arranjos, nem nas calças, nem nas mangas.
Já lá conheci várias empregadas. Tanto as que saem como as que as vêm substituir, são sempre de uma extrema simpatia, cordiais, solícitas, eficazes, competentes e, normalmente, muito bonitas. Com corpos esculturais, mulheres jovens mas já maduras e de grande beleza, não se lhes consegue ficar indiferente...
Mesmo que não tencione comprar nada, às vezes passo por lá só para ver se há novas colecções. Porém, de há um mês para cá, tenho-a visitado com maior frequência do que o habitual.
Bem...porquê escondê-lo? Confesso que tenho ido à loja só por causa dela. Está na loja há pouco tempo, é nova, trigueira, salpicada por umas quase imperceptíveis manchas acastanhadas, que fazem lembrar pequenas sardas, e que lhe dão um atractivo especial, inexplicável, de sonho.
É a sensação de uma maciez aveludada, aquilo que sinto, quando, casualmente, os meus dedos lhe tocam, provocando-me um arrepio incontrolável no corpo. Suspiro baixinho, disfarço, as ideias atropelam-se-me em turbilhão e tento controlar o desejo louco de a ter. Evito que se perceba. Se calhar, sem sucesso...
Mas...
Um choque, um aperto no coração, foi o que senti no outro dia.
À porta, ainda não tinha entrado, vejo-a pendurar-se no pescoço de um homem jovem, bem constituído, que lhe sorria, que a afagava. Pelo vidro translúcido da porta, espreitava-os e adivinhava-lhes, com inveja, um ar de grande felicidade!
Nem cheguei a entrar. Dei meia volta e regressei a casa roído de ciúmes, recriminando-me pelo meu feitio inseguro e indeciso.
Pelo caminho tentei desvalorizar o inesperado episódio. Nos tempos modernos essas atitudes são triviais, as mudanças são comuns, as aparências nem sempre traduzem a realidade e, portanto, não devia preocupar-me demasiado.
Ontem decidi-me! Venci aquela estúpida indecisão, aquele marasmo, e resolvi passar pela loja ao fim do dia. Ganharia coragem e diria a verdade! Revelaria aquilo que me trazia o coração apertado. Não perdia nada com isso, monologava eu comigo mesmo... Assim acabaria com o sofrimento que me atormentava e que não tinha razão de ser!
Cheguei lá, procurei-a avidamente com os olhos. Mas não a vi!
Perguntei por ela, ansioso.
.
A empregada que me atendeu disse-me que aquela bela e cara gravata de seda italiana, de um padrão invulgar, era exemplar único e que a tinham vendido no dia anterior...
Rui Felicio

5 comentários:

  1. Passaram sete anos e a matriz da escrita não se alterou. Um passe de magia nas duas últimas linhas, desatam o nó da gravata como só o autor o sabe fazer.
    Um abraço, Felício ...

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  2. Orgulho-me da lembrança do Rafael e do comentário do Quito, este um verdadeiro escritor que este blog ajudou a divulgar tornando o seu talento por todos apreciado e reconhecido

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  3. É com todo gosto que de vez em quando público alguns dos teus contos que tanto foram apreciados em anos anteriores,e é sempre bom rever a tua escrita em contos tão interessantes.
    Um abraço

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  4. Costuma-se dizer: Toma e embrulha!...
    Mas neste caso, eu diria: Toma e tivesses mandado embrulhar!...

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