(foto net)
Alto, magro, óculos graduados e cabelo negro em carapinha,
assim era o perfil do doutor - sucata. Acrescia ao seu porte, uma camisa branca
que lhe fugia pela cintura à guisa de fralda e umas calças de ganga com algumas
manchas de óleo. Ele, o doutor - sucata como o apelidavam, era clinico. E um
homem inteligente, com um coração mole. Confidenciou um dia, que foi para
medicina para cumprir um sonho da mãe, que queria ardentemente que ele fosse
médico. Mas que, na realidade, do que gostava mesmo era de carros e de motas.
Tinha uma enorme sucata, onde acantonava automóveis de muitas proveniências e
alguns muito antigos, a valer bom dinheiro. As suas consultas na região, eram
sempre uma correria, pois andava sempre atarefado. Atendia vinte pacientes em
quinze minutos. O doente ainda não estava sentado na cadeira, já tinha uma
receita na mão, que mais não era que um rabisco indecifrável. Porém, as pessoas
gostavam dele e da sua faceta humanista. Lá na aldeia, no fim das trepidantes
consultas, chegava ao meio da sala e perguntava:
- Quem é que quer vir para a cidade ?
Se fossem dois que levantavam o dedo, levava dois. Se fossem
oito, levava oito. Era como quem calçava um pé grande num sapato pequeno, só de
calçadeira. E eles, os idosos, gemiam:
- Ai Senhor Doutor, que não cabemos todos …
E a resposta vinha direta:
- Cabem pois, sentem-se ao colo uns dos outros …
E assim, o velho Mercedes lá partia, com os pacientes muito
agradecidos e a dizer com admiração:
- O Senhor Doutor anda sempre cheio de pressa, coitadinho !!!
Tinha com ele uma boa relação. Quando passava por mim no seu
velho carro, acendia as luzes e levantava o braço numa saudação, a que eu
sempre correspondia. E um dia cruzámos - nos na tasca do David. Eu ia a sair, de
beber uma aguardente de medronho que me pagou o Adelino da Lameirinha, e ele ia
a entrar como sempre apressado. Aproveitei o momento, fiz um ar sofredor e perguntei-lhe:
- Doutor, trago aqui uma inflamação numa vista, o que é que
acha que eu faça ?
A resposta veio sintética e de grande rigor científico:
- Não faças nada, come cinco pratos de sopa …
Q.P.
O discurso directo entremeado a preceito nesta crónica do Quito Pereira, dá-lhe vivacidade e colorido sem mudar o estilo da escrita incomparável do autor.
ResponderEliminarAs sentenças do Doutor Sucata iam-me abrindo o sorriso à medida que avançava na leitura.
Culminou numa gargalhada quando no final prescreveu ao doente um inesperado remédio para a sua maleita.
Parabéns Quito
Obrigado, Rui ! Na verdade, este médico que bem conheci, tinha uma fixação por carros antigos ou apenas velhos. Era um médico bem aceite pela população campesina, a que não era estranha a sua vocação humanista e seu perfil de homem despretensioso e simples, por vezes com respostas desconcertantes. Eu penso que já não exerce medicina. Provavelmente já estará reformado
EliminarUm abraço
Desconcertante mesmo foi eu ficar a saber que a figura existiu.
EliminarFiquei convencido, ao ler, que tinhas ficcionado essa personagem.
Em qualquer caso a história não perde o seu encanto.
Um abraço
O QUITO boa noite AMIGO. A estoria desse médico tambem nao me é estranha... Mas o mais importante neste caso é a forma da NARRACAO ...
EliminarBem... e tambem te quero dar o parabens pois com ela fizeste "RESSUSCITAR" ... para o BLOGUE nosso amigo FELICIO...
Este teu "Sucata"dá para rir com este João Semana...receitas passadas sem que o "doente" ainda não se tenha sentado na cadeira (o que mostra bem o conhecimento que ele tinha destes doentes habituais)as boleias apinhadas,mas sobretudo com a receita final de pratos de sopa...
ResponderEliminarUma delícia de texto com personagens com quem conviveste tantos anos lá para as bandas do Salgueiro do Campo
A sopinha faz milagres...
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