Kora ...
Gil Eanes é nome de navegador. Mas é também nome de esplanada
e café com mais de meio século de história. Fica ali, no coração da cidade,
mesmo junto à estátua do “Desejado”. Naquele espaço, cruzam-se destinos. Os de cá,
com a pressa da labuta diária pela vida. Os outros, os forasteiros, que se
passeiam calmamente no arrastar indolente das férias de verão. E foi ali, na esplanada
do Gil Eanes, que de novo encontrei sentado num banco corrido de madeira o
tocador de kora. É um homem novo e elegante no seu porte esguio e dedos ágeis. Tem
umas feições corretas e veste de negro, afinal também a cor da sua pele. Nota - se
nele o cuidado do aprimorar o seu trajar e a dignidade que ostenta naquele
palco de todos os dias que é a rua. Os melodiosos acordes do seu instrumento
africano enchem a praça. Também, a espaços, a sua voz quente e envolvente. Tão
envolvente como a brisa morna que dança agora sobre a copa dos palmeirais. É a
aragem do barlavento algarvio, a associar-se à arte do tocador. Fecho os olhos
e deixo - me embalar pelos ritmos de África. Lembro o meu tempo africano mas,
estranhamente, não é pelo recordar do meu passado de guerra, nem pelo assumir
do medo e das angústias daqueles tempos cinzentos que me deixo envolver. É pela
outra África. A África dos aromas. A África dos sabores. A África dos
mistérios. A África dos poentes cor de rubi. A África das gentes. Pelos dedos de
Cherif Bacisko Susso e da sua música intimista, subo à colina do meu contentamento.
Uma simbiose de fascínio com a terna harmonia dos horizontes de fogo e um
qualquer Deus amado pelos povos daquele continente tão perto e tão distante,
que só quem demandou terras de África é capaz de entender. Oiço em respeitoso
silêncio aquele virtuoso artista da vida e dos sons quentes africanos, e olho
com complacência os basbaques que, de mãos nos bolsos, olham desinteressados e
voltam as costas no seu analfabetismo presunçoso a quem traz até eles a
sabedoria das raízes africanas expressa em notas musicais.
A tarde vai longa e o sol escondeu-se para lá dos telhados. Já
se vai sentindo em crescendo a frescura da noite. Levanto-me então e abeiro-me
dele. Agradeço-lhe aquele momento de magia africana e ele sorriu de agrado. No estojo
daquele instrumento tão singular que me provocou tão arrebatados sentimentos e
lembranças, depositei algumas moedas em louvor da sua arte. E, de coração
cheio, parti.
QP.
E a propósito do Kora nasceu mais um excelente texto.
ResponderEliminarE mais um chamamento à nostalgia das terras africanas, neste caso mais propriamente à Guiné.
A assinatura é de Quito Pereira.
ResponderEliminarDesnecessária, digo eu.
Porque a leitura desta bela reflexão identifica-o claramente pelo estilo,pela criteriosa escolha das palavras, pelo talento que emana da descrição só acessível a quem como ele usufrui do dom da escrita.
Fez me recordar duas verdades só inteligíveis a quem demandou África usando a sua própria expressão:
Uma, os sons, os sabores, os odores, os por-do-sol cor de rubi.
Outra, o analfabetismo pretensioso de quem desdenha a ancestral cultura africana.
Parabéns Quito por este belíssimo texto.
Valeu a pena a ida ao Gil Eanes e eu ao ler o texto, senti-me no coração de África. Até a música consegui ouvir. Obrigado, Quito.
ResponderEliminarAbraço
Grande lição, Mestre Quito!
ResponderEliminarHoje ja é 13, mas mais vale tarde que nunca. Tinh-me chegado aos ouvidos a classe de teus dotes de escritore... Mas sempre escondido... eis enfim que te encontrei... e que delicia de texto que a unica lacuna é nao ser um romance para que nossos olhos, alma e coracao se deleitassem em pleno. beijinhos ficamos esperando...
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