quinta-feira, 11 de outubro de 2018

SONS DE ÁFRICA ...




 Kora ...

Gil Eanes é nome de navegador. Mas é também nome de esplanada e café com mais de meio século de história. Fica ali, no coração da cidade, mesmo junto à estátua do “Desejado”. Naquele espaço, cruzam-se destinos. Os de cá, com a pressa da labuta diária pela vida. Os outros, os forasteiros, que se passeiam calmamente no arrastar indolente das férias de verão. E foi ali, na esplanada do Gil Eanes, que de novo encontrei sentado num banco corrido de madeira o tocador de kora. É um homem novo e elegante no seu porte esguio e dedos ágeis. Tem umas feições corretas e veste de negro, afinal também a cor da sua pele. Nota - se nele o cuidado do aprimorar o seu trajar e a dignidade que ostenta naquele palco de todos os dias que é a rua. Os melodiosos acordes do seu instrumento africano enchem a praça. Também, a espaços, a sua voz quente e envolvente. Tão envolvente como a brisa morna que dança agora sobre a copa dos palmeirais. É a aragem do barlavento algarvio, a associar-se à arte do tocador. Fecho os olhos e deixo - me embalar pelos ritmos de África. Lembro o meu tempo africano mas, estranhamente, não é pelo recordar do meu passado de guerra, nem pelo assumir do medo e das angústias daqueles tempos cinzentos que me deixo envolver. É pela outra África. A África dos aromas. A África dos sabores. A África dos mistérios. A África dos poentes cor de rubi. A África das gentes. Pelos dedos de Cherif Bacisko Susso e da sua música intimista, subo à colina do meu contentamento. Uma simbiose de fascínio com a terna harmonia dos horizontes de fogo e um qualquer Deus amado pelos povos daquele continente tão perto e tão distante, que só quem demandou terras de África é capaz de entender. Oiço em respeitoso silêncio aquele virtuoso artista da vida e dos sons quentes africanos, e olho com complacência os basbaques que, de mãos nos bolsos, olham desinteressados e voltam as costas no seu analfabetismo presunçoso a quem traz até eles a sabedoria das raízes africanas expressa em notas musicais.


A tarde vai longa e o sol escondeu-se para lá dos telhados. Já se vai sentindo em crescendo a frescura da noite. Levanto-me então e abeiro-me dele. Agradeço-lhe aquele momento de magia africana e ele sorriu de agrado. No estojo daquele instrumento tão singular que me provocou tão arrebatados sentimentos e lembranças, depositei algumas moedas em louvor da sua arte. E, de coração cheio, parti.

QP.     

5 comentários:

  1. E a propósito do Kora nasceu mais um excelente texto.
    E mais um chamamento à nostalgia das terras africanas, neste caso mais propriamente à Guiné.

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  2. A assinatura é de Quito Pereira.
    Desnecessária, digo eu.
    Porque a leitura desta bela reflexão identifica-o claramente pelo estilo,pela criteriosa escolha das palavras, pelo talento que emana da descrição só acessível a quem como ele usufrui do dom da escrita.
    Fez me recordar duas verdades só inteligíveis a quem demandou África usando a sua própria expressão:
    Uma, os sons, os sabores, os odores, os por-do-sol cor de rubi.
    Outra, o analfabetismo pretensioso de quem desdenha a ancestral cultura africana.

    Parabéns Quito por este belíssimo texto.

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  3. Valeu a pena a ida ao Gil Eanes e eu ao ler o texto, senti-me no coração de África. Até a música consegui ouvir. Obrigado, Quito.
    Abraço

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  4. Hoje ja é 13, mas mais vale tarde que nunca. Tinh-me chegado aos ouvidos a classe de teus dotes de escritore... Mas sempre escondido... eis enfim que te encontrei... e que delicia de texto que a unica lacuna é nao ser um romance para que nossos olhos, alma e coracao se deleitassem em pleno. beijinhos ficamos esperando...

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