sábado, 20 de outubro de 2018

MARIEMA ...





 (foto net)

Que estranha sensação esta, a minha, de insistir em recuar na Máquina do Tempo ! Fecho os olhos e deixo-me sucumbir pelo arrastar dos dias pretéritos. De vaguear, ao sabor de um passado distante. Que estranhos sonhos estes, os meus, que me levam na vertigem das asas plúmbeas, ao encontro do sofrimento! Mas, de novo, lanço âncora na memória e regresso aos verdes anos da minha juventude. De uma juventude despreocupada. Um dia, caí numa cilada, e arrastei a minha existência por um longínquo país africano. Guiné se chamava e chama. Prendi-me de amores, quando lá cheguei. Não por uma mulher. Mas pela explosão das cores. Por aquele Templo de manhãs resplandecentes, que me embriagavam os sentidos. Quando o sol subia na vertical da bolanha, inundando a mata de uma claridade generosa. E as tardes, clamorosas de calma e serenidade. E, ao lusco - fusco, quando as estrelas já quase se desenhavam no Céu, o majestoso perfil dos embondeiros, esculpidos contra a abóbada imensa de um céu escarlate. E era ali, sentado debaixo da copa de uma frondosa árvore, que eu ouvia os cânticos africanos, que ecoavam pela floresta. O som dos batuques e o movimento ritmado do amassar da mandioca no pilão. Aquela simbiose única, entre o perfume dos costumes ancestrais de um povo e a bola de fogo incandescente que descia na linha do horizonte e fazia qualquer ente pensar que estava às portas do paraíso. Mas não. Havia a guerra. A maldita guerra. Omito recordar. Não quero falar de homens, como se de feras se tratasse. Quero falar de paz. Quero falar de justiça. Quero falar de solidariedade. Quero falar de fraternidade. Quero falar de amor. Quero falar de Mariema. Era a minha lavadeira. Quinze anos de idade, talvez. Olhos grandes e pele cor de púrpura. Rápida no pensamento, fulminante na palavra. Apareceu-me no primeiro dia em que pisei terras do Gabu. Falava alto e gesticulava muito. Oferecia-se para me lavar a roupa. Aceitei. E, pelas imaculadas tardes, lá vinha ela, os olhos fixos no chão, de alvo lençol à cabeça, onde trazia cuidadosamente acondicionado, o meu trajar. No corpo, o tecido colorido que lhe moldava o porte esguio. Pressentia-lhe no rosto, a tortura de uma vida de labuta. Numa terra onde tudo se regateava, nunca discuti o valor do seu labor.  Por vezes, por brincadeira, questionava o preço que sempre lhe pagava. Apenas para ouvir a justeza dos seus argumentos. A sagacidade do seu raciocínio. A inocência do seu olhar. A Mariema foi um terno caso de amor. Um caso de amor fraterno. Ainda tenho por ela hoje uma comovida lembrança. Foi a minha diva de África.

Quito Pereira              

4 comentários:

  1. Caro Fernando Rafael

    Em tempo do décimo aniversário do "Encontro de Gerações", repúblico este texto, pelo simples facto de várias vezes me teres falado dele como um dos teus eleitos na minha colaboração com o teu blogue. Em jeito de "prenda" aqui te deixo a "tua" Mariema ...
    Um abraço

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  2. Nao sei porque mas à medida que ia lendo o texto, no meu pensamento o teu nome ia tomando lugar como o unico e possivel autor deste texto tao bem delineado e de conntornos romanesco e saudosos e de uma elegancia que so de ti emana. Obrigada QUITO.

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  3. Já conheço, assim que abro a matéria, de quem é a autoria. A característica no escrever é a mesma, mas os detalhes no contar as lembranças...esses sempre me soam diferentes. É para cada história.
    E, sem mesmo ter conhecido a Mariema, à medida que lia o texto, vinha-me nitidamente o seu caminhar...certamente que os raios de sol das "imaculadas tardes" faziam-lhe reverência e deviam ficar maravilhados com o colorido de suas roupas.
    Quito, apesar de lembranças das guerras, olha o lado irônico(?) da vida: estas lembranças, singulares, não as terias, nem Mariema terias conhecido.
    O bom é que tudo isso poderias ter tido/sentido, sem necessário teres passado pela "maldita guerra". Mas...

    Um abraço, com todo respeito, claro!

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  4. Realmente e tal como dizes este teu texto que agora repúblicas,e postado há já uns anos,foi de todos os publicados, aquele que se fixou na minha memória, especialmente na parte dedicada a essa figura feminina Mariema.Lavadeira de militar em tempo de guerra.Já tinha lido o texto por uma segunda vez e agora está terceira vez fica como uma prenda nestes dez anos desta "espécie" de blogue!Nada melhor para iniciar um novo ciclo bloguista sem o nosso já saudoso Chico com as suas postagens e os seus magníficos comentários.Continuamos agora a caminhada a dois na esperança que por vezes seja a três...ou mais!


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