(foto net)
Que estranha sensação esta, a minha, de insistir em recuar na
Máquina do Tempo ! Fecho os olhos e deixo-me sucumbir pelo arrastar dos dias
pretéritos. De vaguear, ao sabor de um passado distante. Que estranhos sonhos
estes, os meus, que me levam na vertigem das asas plúmbeas, ao encontro do
sofrimento! Mas, de novo, lanço âncora na memória e regresso aos verdes anos da
minha juventude. De uma juventude despreocupada. Um dia, caí numa cilada, e
arrastei a minha existência por um longínquo país africano. Guiné se chamava e
chama. Prendi-me de amores, quando lá cheguei. Não por uma mulher. Mas pela
explosão das cores. Por aquele Templo de manhãs resplandecentes, que me
embriagavam os sentidos. Quando o sol subia na vertical da bolanha, inundando a
mata de uma claridade generosa. E as tardes, clamorosas de calma e serenidade. E,
ao lusco - fusco, quando as estrelas já quase se desenhavam no Céu, o majestoso
perfil dos embondeiros, esculpidos contra a abóbada imensa de um céu escarlate.
E era ali, sentado debaixo da copa de uma frondosa árvore, que eu ouvia os
cânticos africanos, que ecoavam pela floresta. O som dos batuques e o movimento
ritmado do amassar da mandioca no pilão. Aquela simbiose única, entre o perfume
dos costumes ancestrais de um povo e a bola de fogo incandescente que descia na
linha do horizonte e fazia qualquer ente pensar que estava às portas do
paraíso. Mas não. Havia a guerra. A maldita guerra. Omito recordar. Não quero falar
de homens, como se de feras se tratasse. Quero falar de paz. Quero falar de justiça.
Quero falar de solidariedade. Quero falar de fraternidade. Quero falar de amor.
Quero falar de Mariema. Era a minha lavadeira. Quinze anos de idade, talvez.
Olhos grandes e pele cor de púrpura. Rápida no pensamento, fulminante na
palavra. Apareceu-me no primeiro dia em que pisei terras do Gabu. Falava alto e
gesticulava muito. Oferecia-se para me lavar a roupa. Aceitei. E, pelas
imaculadas tardes, lá vinha ela, os olhos fixos no chão, de alvo lençol à
cabeça, onde trazia cuidadosamente acondicionado, o meu trajar. No corpo, o tecido
colorido que lhe moldava o porte esguio. Pressentia-lhe no rosto, a tortura de
uma vida de labuta. Numa terra onde tudo se regateava, nunca discuti o valor do
seu labor. Por vezes, por brincadeira, questionava
o preço que sempre lhe pagava. Apenas para ouvir a justeza dos seus argumentos.
A sagacidade do seu raciocínio. A inocência do seu olhar. A Mariema foi um
terno caso de amor. Um caso de amor fraterno. Ainda tenho por ela hoje uma
comovida lembrança. Foi a minha diva de África.
Quito Pereira
Caro Fernando Rafael
ResponderEliminarEm tempo do décimo aniversário do "Encontro de Gerações", repúblico este texto, pelo simples facto de várias vezes me teres falado dele como um dos teus eleitos na minha colaboração com o teu blogue. Em jeito de "prenda" aqui te deixo a "tua" Mariema ...
Um abraço
Nao sei porque mas à medida que ia lendo o texto, no meu pensamento o teu nome ia tomando lugar como o unico e possivel autor deste texto tao bem delineado e de conntornos romanesco e saudosos e de uma elegancia que so de ti emana. Obrigada QUITO.
ResponderEliminarJá conheço, assim que abro a matéria, de quem é a autoria. A característica no escrever é a mesma, mas os detalhes no contar as lembranças...esses sempre me soam diferentes. É para cada história.
ResponderEliminarE, sem mesmo ter conhecido a Mariema, à medida que lia o texto, vinha-me nitidamente o seu caminhar...certamente que os raios de sol das "imaculadas tardes" faziam-lhe reverência e deviam ficar maravilhados com o colorido de suas roupas.
Quito, apesar de lembranças das guerras, olha o lado irônico(?) da vida: estas lembranças, singulares, não as terias, nem Mariema terias conhecido.
O bom é que tudo isso poderias ter tido/sentido, sem necessário teres passado pela "maldita guerra". Mas...
Um abraço, com todo respeito, claro!
Realmente e tal como dizes este teu texto que agora repúblicas,e postado há já uns anos,foi de todos os publicados, aquele que se fixou na minha memória, especialmente na parte dedicada a essa figura feminina Mariema.Lavadeira de militar em tempo de guerra.Já tinha lido o texto por uma segunda vez e agora está terceira vez fica como uma prenda nestes dez anos desta "espécie" de blogue!Nada melhor para iniciar um novo ciclo bloguista sem o nosso já saudoso Chico com as suas postagens e os seus magníficos comentários.Continuamos agora a caminhada a dois na esperança que por vezes seja a três...ou mais!
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