terça-feira, 17 de agosto de 2010

CrÒNICA BALNEAR DE USOS E COSTUMES



...OU DE ABUSOS E CURTUMES

Jorge Castro


Assim somos e assim estamos, para a praia virados, fatídicos e imperiosos, como se a terra firme nos pesasse. O êxodo balnear anual e universal que Portugal vive poderia ser caso de estudo, se tal servisse para alguma coisa, sociologicamente falando.

Mas como estas coisas há muito que deixaram de interessar fosse a quem fosse, resolvi, por eventual mania da contradição, falar eu desta, colhendo farta panóplia de exemplos numa escassa quinzena em que desfrutei de sol e mar mais a sul.

Em primeiro lugar e para que não me venham com os habituais epítetos de maledicente militante, sempre aqui lavro que fui excelentemente recebido e tratado em todos os lugares públicos de exploração privada que frequentei – e refiro-me, claro, à costa algarvia – o que varreu de mim aquela sensação de ser «um estranho em terra estranha» que me assolava sempre que me dirigia, no Verão, ao Algarve. Simpatia pessoal a rodos, espontânea e interessada, que foi largo motivo de regozijo para mim e para quantos me acompanharam.

Dito isto, reconciliação, pois, total – ou quase, não fosse a pressão urbanística – com este destino de férias.

Mas não é este o motivo desta crónica. Dei por mim a cuscar comportamentos, de nacionais e não só, vulgarmente chamados seres humanos, cuja desumanidade de atitudes me leva a questionar-lhes direito a tal atributo. Alguns exemplos, sem qualquer ordem de prioridade:
- o jogar futebol (e outras modalidades invasivas) na praia, à beira-mar, independentemente da lotação do espaço;
- a atracção fatal por estender a toalha e a família junto aos letreiros que anunciam o perigo das arribas instáveis e à sombra destas;
- a colheita de flores (e raízes e bolbos) em locais públicos, para colocar no cabelo, no decote, no bolso, etc.;
- o lançamento de beatas para o chão, numa presunção angélica de que elas não são lixo;
- o passeio do cãozinho (só ou acompanhado, a diferença é quase irrelevante) a defecar na via pública;
- o sentido hiper-gregário na escolha de lugar na praia. Ocorreu-me, até, que num extenso areal totalmente deserto, às oito da manhã, o primeiro casal a dar à costa, «armado» com duas criancinhas à ilharga, estendeu o seu estendal a escassos dois metros (!) do local onde estava a minha pobre toalha, como se de primos da terra se tratasse e aquela intimidade toda fizesse todo o sentido…
- o fazer todas as vontades às criancinhas, que gritam desalmadamente pelos cotovelos perante a impassibilidade dos paizinhos, ou o passarem estes o tempo todo aos gritos para que as criancinhas não façam isto ou aquilo… rapidamente esquecendo o seu estatuto parental e ignorando a sua existência quando as criancinhas passam a chatear terceiros.

Este levíssima amostragem decorre de um estudo meu, apurado nos tais quinze dias, e apenas são referidas circunstâncias que tenham ocorrido na minha presença, pelo menos, por três vezes Há que ser cuidadoso e rigoroso nestas coisas de análises sociais e outras que tais.

Eu sei que os exemplos vêm de cima e de cima só vemos maus exemplos. Eu sei que a pressão humana é desumanizante e em espaços públicos sobrelotados – e por isso é que vão medrando tantos condomínios fechados… – se propicia a «animalização» das gentes.

Mas tenho para mim que estes fenómenos tendem a agigantar-se. E tenho também que há por aqui muita falta de cultura de berço. Sabem o que é, aquelas coisas que os paizinhos costumavam ensinar às criancinhas, alertando-as, desde logo, para essa inevitabilidade de que o mundo é constituído por nós e pelos outros.

Quando um honorável cidadão deixa depositada na via pública a bosta do seu cão, à qual lança um olhar de olímpica indiferença, até podemos dizer que, em última análise, a culpa é de José Sócrates, pois aquela alma tem sobejas razões para se querer vingar dos maus tratos que o governo lhe inflige.

A questão é que quem vai pisar a bosta hei-de ser eu ou, até, a mãezinha dele, pobre velha de parca visão,
mas muito improvavelmente o senhor engenheiro ou alguém do seu séquito, pelo que a vingança está irremediavelmente deslocada, pagando o justo pelo pecador. E eu, com prosápias do justo da cena, não me considero digno de pisar bosta alheia, como se convirá.

Na verdade, o exercício de ser humano é uma tarefa árdua, complexa e desafiante, que leva o seu tempo de aprendizagem e, para além das minudências fisiológicas, não é inata, nem se instala, ainda, através de qualquer chip introduzido no bestunto.

Há aqui, pois, um larguíssimo espectro de actividade parental que anda aparentemente descurado e substituído por convenientes e cómodas «play stations».
E se a desculpa estiver na dificuldade do casal trabalhador em cuidar da sua prole, então justificará a existência de uma vasta rede pública e privada de acções de formação para a cidadania ou arte de viver com os outros, ao longo de toda a vida, começando na mais tenra infância…

Já viram quantos empregos seriam, concomitantemente, gerados? E como viveríamos todos, muito provavelmente, um pouco melhor em comunidade?
Caro leitor, se nunca pecou, sinta-se à vontade para me lançar a pedrada, a mim, pecador confesso. Mas – confesse lá – não poderá ser um bocadinho mais cuidadoso e, afinal, altruísta para com o seu semelhante ou já está tão empedernido que isso não lhe interessa para nada? É que até esse seu desinteresse interessa ao seu semelhante…
Da Revista On Line FREE ZONE de Pedro Laranjeira
com texto do escritor e poeta Jorge Castro "Orca"
marcadores: Férias, Free Zone

4 comentários:

  1. O Jorge actualíssimo no seu texto...civismo
    falta...egoismo em excesso...alheamento, em grau
    elevado na educação, das crianças...
    Mais atenção ao espaço comum e às pessoas que o usam será o que todos deveremos interessadamente fazer!!!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Bem observado!
    Duas palavras me ocorrem...
    1. Tremenda falta de educacao.
    2. Falta de cultura civica.

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  4. Um tema de crónica bem actual e visto pelo olhar atento e a escrita fluente do Jorge, que não dá férias ao seu poder observador e crítico sobre o que nos rodeia.

    Li com imenso.

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