terça-feira, 10 de agosto de 2010
INSÓLITA SEPARAÇÃO
Meteu a chave à porta, tacteou o interruptor e o apartamento iluminou-se.
Desde que a mulher se foi, deleitava-se com o silêncio da casa ao regressar do trabalho.
Atirou a pasta para cima de uma cadeira, e foi espalhando por onde calhava, o casaco, a gravata, a camisa, os sapatos, as peúgas, as calças, à medida que se despia e se encaminhava para a casa de banho.
Desfrutou de um enorme prazer por saber que aquele seu comportamento a irritaria, se ela ainda ali morasse.
Vestiu uma t-shirt e umas calças de pijama e foi até à cozinha. Do amontoado de louça suja de vários dias, escolheu um prato, um copo e uns talheres que passou por água. Apanhou duas embalagens de comida atrasada que caíram no chão quando abriu a porta do frigorifico e procurou, no meio daquela desarrumação, um bocado de queijo, umas fatias de fiambre e um pacote de manteiga já aberto, para petiscar qualquer coisa. Foi buscar um papo seco e despejou vinho no copo.
Passou o esfregão num tabuleiro sujo e colocou nele a comida, o prato, o copo e os talheres.
Estendeu-se, com o tabuleiro ao colo, no sofá da sala cheio de nódoas, e lá conseguiu ligar a televisão, depois de três ou quatro murros no antiquado aparelho. Era um cerimonial imprescindível para que a imagem finalmente aparecesse.
Passava um debate entre dois políticos...
Voltou a lembrar-se do gozo que lhe dava estar a ver aquele programa chato e inconclusivo, pensando na irritação dela, se ali estivesse, a refilar por querer ver a telenovela.
Estiveram casados durante 15 anos, mas os últimos cinco foram um cenário de tragédias, de discussões intermináveis, de insuportável convívio. O que aconteceu não foi surpresa, portanto.
Espantou-se por, naquela noite, estar a pensar tanto nela. Estupidamente, chegou a pensar que se tivesse o seu número de telefone, tentaria ligar-lhe! De qualquer modo, não o tinha...
Lembrou-se de quanto ele desejara ter tido filhos, sem nunca os ter porque ela sempre se tinha recusado.
Reconhece, agora, que ainda bem que assim foi.
Que inferno seria a vida dessas crianças, órfãs de mãe e com um pai que a assassinou?
Rui Felício
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Apetecia-me dizer que o Felício já não me surpreende mas não é verdade.
ResponderEliminarAqui temos mais um "um final de estória" verdadeiramente surpreendente!
Um abraço e parabéns.
Carlos Viana
Nos "monólogos a dois" que vou tendo com o meu amigo Felício, já tinha conhecimento desta estória. De qualquer forma, fiquei expectante, a ver como se desenrolava. Está lá toda a matriz do Felício, na forma como encaminha o leitor para um final surprendente. Disse-me, generosamente, "que ela ia morrer no fim".Fiquei desconfiado. Mas foi exactamente assim. Não sei de quem foi a ideia da foto, com os pratos todos empilhados, mas a verdade é que ajudou a dar vida ao texto, na realidade que estava a ser transmitida ...
ResponderEliminar"Fuosca-se"! Simplesmente brilhante (diamante não por causa da Naomi...)!
ResponderEliminarHistória com princípio, meio e fim... e com que fim!!!
ResponderEliminarAdivinho que isto se passou em Portugal, caso contrário o gajo espalhava as roupas mas não era pela casa, era pela cela da prisão...
Crime passional à Camilo...
ResponderEliminarAmar "demasiado" pode acabar mal...tenho
alguma compreensão pelo assassino...mas a cadeia espera-o!
Gostei do texto pela actualidade do tema, pela descrição, pela construção da estória. Realmente o final surpreendeu!
ResponderEliminarJustiça! O fulano devia ter ido comer e espalhar as roupas na prisão, não posso estar mais de acordo com o Moreirinhas.
Artista da ESCRITA.
ResponderEliminarUm Abraço.
Tonito.
Confirmo a conversa que tive com o Quito no próprio dia em que pessoa conhecida me contava a sua separação conjugal. Disse então ao Quito que as confidências e pedidos de conselho recebidos desse homem,me tinham feito surgir o esqueleto desta história.
ResponderEliminarA vida é um mosaico multifacetado de situações que, se estivermos atentos,nos dão perspectivas inimagináveis. Algumas cruas, como esta, mas perfeitamente possiveis...
Rui,hoje trazes-nos um facto ao qual não podemos ficar indiferents.
ResponderEliminarTem ainda a complementar uma imagem,qual cenário de tragédia, conduzindo-nos a um desfecho quase intuitivo.
A agressividade desenrrolava-se em cada palavra,em cada gesto. Nem o televisor escapava...
Mas quem sou eu para compreender comportamentos tão aberrantes?!
Mas quem sou eu para julgar?!
Invade-me um sentimente de sufocante impotência.
Agora é certo,realidade que dói,dói muito,mesmo muito!!!
Um abraço de parabéns ao Rui Felício!
ResponderEliminarBrilhante!