Chamem-me Clark Gable!
Era assim que o Sequeira preferia que o tratassem...
Cabelo preto ondulado, meticulosamente empastado com “Brylcream”, risco a três quartos, um fino bigode preto bem desenhado por cima do lábio, compunham o busto cinematográfico que encimava a figura muito alta e quase esquelética do Sequeira, empacotada por uma bata branca de barbeiro, de irrepreensível brancura.
Como a bata não tinha sido feita à sua medida, ficava-lhe muito curta.
Mais parecia um bibe, sob o qual emergiam umas coçadas calças pretas justas, ao fundo das quais sobressaiam umas botas de sola de pneu com as biqueiras a apontarem para os lados, como as do Charlie Chaplin...
Exercia a sua profissão, como empregado, na barbearia do Bairro, mas estava muito longe, segundo se dizia, de ter a experiência profissional de um bom barbeiro.
Falava-se à boca pequena que cortava o cabelo às escadas, assassinando o mais perfeito penteado.
Dizia-se, que quem tinha o azar de cair nas mãos do Sequeira, se ia sentar na “cadeira eléctrica”, alcunha aliás que acompanhou o Clark Gable da barbearia do Bairro para o resto da vida.
Dizia-se, que quem tinha o azar de cair nas mãos do Sequeira, se ia sentar na “cadeira eléctrica”, alcunha aliás que acompanhou o Clark Gable da barbearia do Bairro para o resto da vida.
Quatro clientes aguardavam, sentados, a sua vez de irem cortar o cabelo. Um, lia o Diário de Coimbra, dois outros conversavam com o Sr. Simões, dono da barbearia, e o Eurico, por sinal aquele que seria o próximo a ser atendido, mantinha-se calado e manifestava evidentes sinais de ansiedade e algum nervosismo. Não parava de apreciar o rapazinho que, como vitima no cadafalso, se encontrava recostado na cadeira reclinável e de cuja cabeça iam caindo no chão tufos de cabelo que a tesoura do Sequeira ia freneticamente desbastando.
O Eurico rezava em surdina para não lhe calhar o Sequeira.
Mal por mal, preferia que fosse o Sr. Simões a cortar-lhe o cabelo.
Mas, despachado como era, e acabado o seu trabalho, o Sequeira recebeu o dinheiro do rapazinho e, de pente seboso numa mão e a tesoura ferrugenta na outra, brandindo os instrumentos como armas de arremesso, voltou-se para os clientes e perguntou, com voz melíflua:
- Quem é o próximo?
O Eurico respondeu-lhe:
- Era eu, mas lembrei-me mesmo agora que tenho que ir à Baixa fazer uma coisa. Dou a minha vez...
Em uníssono, os outros três clientes, apontando o dedo ao Eurico, intimaram-no:
- Não, não! A gente não quer tirar a vez a ninguém! Você já cá estava antes de nós .Por isso, faz favor de se ir sentar na cadeira do Sr. Sequeira!
O Sequeira, meneando-se, pediu:
- Meus Senhores, por favor! Chamem-me Clark Gable...
Rui Felício
NOTA: Agradeço ao Quito que ontem no almoço em que tive o prazer de estar à sua mesa, me falou desta personagem. Deu-me matéria para relatar este episódio.
O Sequeira foi uma das figuras do nosso bairro. Não tinha a visibilidade do Albino barbeiro, mas não deixou de ser um dos barbeiros do nosso bairro. Sem grande apetência para o lugar, convenhamos. Talvez por isso, era chamado do "cadeira eléctrica". O Felício conseguiu,com rara mestria, compôr uma figura muito próxima do Sequeira. E quando o Felício fala em mim, mais não faz do que prestar-me homenagem, uma vez que por várias vezes fui vitima naquela roleta russa, sempre que o Sequeira de tesoura em riste dizia a frase sinistra: "...quem é o próximo ..." . Sempre que se ouvia aquela frase, descia sobre a barbearia um pesado silêncio, sem que ninguém desse um passo para a cadeira eléctrica. Portanto, o Felício fêz uma espécie de evocação dos justiçados do Coliseu de Roma.Recordo o dia - em jeito de homenagem - em que eu e mais dois ou três nos perfilávamos para cortar o cabelo. O Sequeira, com a sua voz cordata, fêz a tal pergunta sinistra. Ficámos a olhar uns para os outros, sem que ninguém avançasse. Foi então que o nosso querido amigo João Campante, se levantou pesadamente da cadeira e em jeito de resignação disse: "..já que ninguém se oferece ...vou eu ..". E foi assim que o Campante, a ler a "Bola" e com um lençol branco à guisa de babete para não sujar a fatiota, viu o Sequeira desbaratar-lhe a golpes de tesoura o cabelo, enquanto o pente gasto pelo uso e sem dois dentes ia alisando a decrépita cabeleira. Não sei de onde era oriundo o Sequeira, mas também aqui o relembro. Tal como o Campante era um homem bom, ao Sequeira, o que lhe faltava na arte de barbeiro, sobrava-lhe em educação ..
ResponderEliminarRui Felício e Quito fazem uma belíssima dupla.
ResponderEliminarNão sei qual é o melhor.
Sei que o que escrevem tem grande qualidade literária,grande sensibilidade que conseguem transmitir.
Fazem a minha delícia.
Obrigado aos dois.
Um abraço.
E o ALBINO que só cortava cabelos em casa.
ResponderEliminarCom toda o saber da minha ARTE ATINGI O PONTO MÁXIMO da CARREIRA de Cabeleireiro de Homens, com os Meus Amigos e CLIENTES (dito pelo ALBINO).
Tonito.
Realmente náo me lembro desta personagem ajudante do Simões.
ResponderEliminarDeve ter sido durante o meu afastamento de Coimbra.
O Simões sim cortou-me várias vezes o cabelo, que não era fácil, pois nesse tempo era bem rijo e farto...mais tarde...foi-se!
O Albino algumas vezes lá foi a casa, cortar o cabelo e claro interpretar uma duas canções.
Tudo incluido no preço.
Devem lembrar-se quando o Albino foi cantar ao programa do Igrejas Caeiro, salvo erro na Feira Popular!
...e uma nota de quinhentos não se pode deitar fora...
Confesso que o barbeiro Sequeira se me escapa na memória.
ResponderEliminarIsso não impede de me ter deliciado com a história contada pelo Felício e complementada com o comentário do Quito.
Como diz o Rui Lucas, uma belíssima dupla.
Mas, bem viva na minha memória, tenho a imagem do barbeiro Simões, o Senhor Simões, dono da barbearia.
Também ele tinha um bigodinho bem talhado, à moda de Clark Gable. Só que branco, assim como o cabelo, não por opção mas pelo peso da idade.
Do Senhor Simões retenho que gostava de se auto-intitular "os olhos mais lindos da alta", donde era oriundo.
Era uma pequena vaidade, por todos desculpada.
Também era desculpado, até se lhe achava piada, quando interrompia um corte de cabelo com a justificação de que tinha de ir à farmácia tomar uma "estreptómicina".
A farmácia ficava do lado esquerdo para quem saía da barbearia, mas o Senhor Simões virava à direita...
À direita ficava a mercearia do Senhor Manuel. Mercearia polivalente, ao fundo, num cantinho, eram servidos copinhos de vinho.
E lá voltava o nosso Simões, revigorado para continuar o seu árduo trabalho...
Um outro barbeiro, figura típica do Bairro, o nosso Albino, tem sido referenciado como "cortador de cabelos" em casa dos seus clientes.
ResponderEliminarConheci-o como barbeiro,numa modesta barbearia, à entrada da Estrada da Beira, logo a seguir à passagem de nível do Calhabé.
Também ele interrompia o seu trabalho, após autorização do freguês, para ir fazer um telefonema.
Cada um tem a sua "estreptómicina"...
No que respeita ao nosso tempo, o Rui Felício é um desfilar de recordações. No outro dia foi o Dr. Boa Ventura de Sousa Santos que também tive como professor, hoje lembra-nos os Srs. Simões, Sequeira que penso lembrar-me pois ninguém o queria mas da sua "cadeira", já não me lembro. Quanto ao Albino barbeiro a quem o Quito se referiu, era um tratado com muito geito para as crianças. Recordar, é viver. O Campante, será para mim sempre uma saudade que não esquecerei.
ResponderEliminarO Sequeira não aqueceu muito o lugar. Esteve na barbearia por um período não muito longo.Era alto e magro, moreno de cara e com parco cabelo, que penteava para trás com muita brilhantina. Falava vagarosamente.Era um homem enervantemente calmo. Também muito educado. Não me recorda de o ver agastado pelo facto dos clientes ficarem à mercê da sua tesoura. E por vezes, a indefinição de quem se sentava na cadeira, quase tocava as raias da ofensa pessoal ao dito Sequeira, que um dia julgou que tinha apetência para barbeiro. De Clark Gable, também tinha pouco. Estava longe de arrebatar paixões nos aterrorizados clientes ..
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarEstou como o Rui Lucas..."fazem a minha delícia"!
ResponderEliminarMas...estes brilharetes, quer do Quito, quer do Rui Felício...com os oportunos comentários do Carlos Viana, são como um optimo "cabrito assado"...ao qual o Carlos Viana junta mais uma "pitadinha"!!! Fica excelente!!!!
Abraço para todos.
Jose Leitao
Mais uma belíssima história, esta com personagens que, felizmente, não conheci... ou seja, nunca me puseram as mão no cabelo...
ResponderEliminar